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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA "PERCEPÇÃO"

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA “PERCEPÇÃO"

NEUZA MACHADO


Esta análise do poema “Percepção” faz parte do livro Criação Poética: Tema e Reflexão: Sobre a obra poética de Gilberto Mendonça Teles.

MACHADO, Neuza. Criação Poética: Tema e Reflexão. Rio de Janeiro: NMACHADO, 2005.

(Apreciem os esquemas do poema "Percepção" no final do capítulo)


PERCEPÇÃO

Gilberto Mendonça Teles


O mundo te rodeia de cercas e desejos,
te comprime no refúgio de teu quarto
e te restringe à lâmina das coisas
no seu fino acontecer.

Todavia, o amor é para toda a vida,
é para sempre e um dia e mais talvez:
o amor te prende às palavras e te liberta
na invenção de alguns códigos e silêncios.

É possível que a tua cota de realidade
seja agora por demais excessiva
e apenas te deixe perceber os possíveis
de outros planos e subversões.

Vê como as cortinas disfarçam o teu olhar,
como as ruas se enrodilham aos teus pés
e como algumas veredas vão desaparecendo
nos teus desertos e viagens.

Que seria de ti sem os teus espelhos?
sem a jarra-de-flores que guarnece
o espaço dessa mesa de pernas para o ar,
com velhas catacreses da gaveta?

É para ti que as águas vão polindo
os sentidos desse único sentido
ainda vulnerável, mas perdido na cena,
no espetáculo obsceno de ti mesmo.

TELES, Gilberto Mendonça. Hora Aberta. Rio de Janeiro: José Olympio/Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986 (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).


Nos versos do poema “Percepção”, do livro Plural de nuvens, o sujeito da enunciação assinala o fato de que o ser humano vive, no mundo, rodeado de "cercas" e "desejos". Em uma análise cientificista, como é o caso da Semiologia do Texto Literário, não há como desenvolver um estudo que explique realmente as significações dos referentes “cercas” e “desejos” que compõem a idéia de mundo vital. A análise exclusivamente cientificista privilegia apenas um estudo objetivo das camadas visíveis do texto (por meio de esquemas e dissecações), não se incomodando em absoluto com a camada plurissignificativa reveladora das mensagens ocultas, camadas invisíveis que só serão apreendidas por intermédio de uma interpretação extra-texto.

Neste caso, resguardada pela interpretação fenomenológica, procuro descobrir os diversos sentidos dos referentes em questão. E eis que percebo o Mundo, graças a sensibilidade do Poeta goiano, como um lugar opressivo repleto de cercas e desejos. Detenho-me para pensar nos inúmeros significados, denotativos e conotativos, das palavras "cercas" e "desejos", já ostentando, ambas, um certo grau de multiplicidade, graças a pluralização que as engrandece. "Cercas" e "desejos" fazem parte do cotidiano do homem. Cercas ideológicas, diretrizes de vida que impedem o ser humano de direcionar seu próprio destino. Desejos que não se realizam, porque há forças poderosas contrárias à realização. "Cercas e desejos" submetendo o homem a um mundo de aparências, desviando-o de seus anseios mais puros. E eis exatamente o que o Poeta quer revelar: preso numa armadilha de conceitos, o ser humano não consegue vislumbrar o Amor, o Absoluto e a essência da Poesia, perceptíveis apenas para uns poucos eleitos.

O poema (mesmo se adequando ao Gênero Lírico) é uma crítica; é a certeza de que há a necessidade de um eu consciente para fazer com que o outro desperte. Há a necessidade de despertar a atenção daqueles que estão confinados em um espaço fechado, espaço onde imperam normas ideológicas cegas e intransigentes. E ele aponta a solução: há que se transcender os limites substanciais e buscar o que se encontra por trás da cortina. Atrás da cortina, ou seja, no lado oculto do poema está o único sentido, ainda vulnerável, ainda na sombra, mas passível de ser decodificado, de ser visível.

Seguindo as normas da Semiologia de Segunda Geração, o poema pode ser dividido em três movimentos. A primeira estrofe de quatro versos e os quatro versos iniciais da segunda estrofe de oito versos tornam-se visíveis como assinaladores do primeiro movimento. O segundo movimento é formado pelos quatro versos finais da segunda estrofe de oito versos. O terceiro movimento (e último) encontra-se representado nos versos finais desde “vê como as cortinas disfarçam o teu olhar”. Os referentes destes versos serão caracterizados aqui como MUNDO IDEOLÓGICO, representando o ESPAÇO CONCEITUAL, dimensão esta que, por sua vez, será nesta análise reconhecida como sema isotópico. Um segundo referente constrói a realidade expressa de um tu hipotético ilhado em seu quarto. O sema isotópico que dá sentido a esta realidade objetiva será representado como o ESPAÇO INDIVIDUAL desse tu, "rodeado de cercas e desejos".

O sujeito da enunciação poético-lírica afirma que atrás da cortina está o único sentido passível de ser decodificado. A cortina simboliza os conceitos, os desejos, os sentidos, tudo o que está à volta do ser humano e o comprime e o impede de visualizar o Amor. E a palavra Amor, aqui, terá de ser entendida como um referente realçador da própria Poesia.

Há no poema um significativo aviso: “Vê como as cortinas disfarçam o teu olhar, / como as ruas se enrodilham aos teus pés / e como algumas veredas vão desaparecendo / nos teus desertos e viagens”. Essas ruas ainda não se encontram ao alcance da terceira visão que as tornará amplas e retas. As ruas se embaraçam nos pés, pois são caminhos já conhecidos, cristalizados, conceituados; não há a necessidade de uma percepção que ultrapasse os obstáculos e que permita visualizar o não-conhecido. Numa situação nova, estamos presos a velhos conceitos que nos impedem de raciocinar adequadamente e ultrapassar novos limites e novas ruas; novos caminhos, novas veredas desaparecem porque estamos presos aos costumes, às cercas e desejos; estamos ligados a um mundo aparentemente organizado, que nos traça os caminhos, que nos limita. Limitados a conceitos pré-estabelecidos, excessivamente repletos dos dogmas que imperam à nossa volta, adquirimos posicionamentos superficiais, insuficientes para nos fazer perceber que há uma supra-realidade que vigora no tempo e no espaço, que pode ser captada por vários ângulos, mas que, em virtude de sua grandeza, jamais poderá ser abarcada em sua totalidade. Repletos de velhos conceitos superficiais, os quais nos impedem de abrir novos caminhos, nosso interior torna-se um deserto; há o medo de uma incursão/excursão ao novíssimo plano da liberdade substancial, medo este que nos impede de desbravar o não-conhecido.

“Que seria de ti sem os teus espelhos?”, indaga-nos o Poeta.

Subentende-se, neste verso, uma crítica aos leitores lineares, uma chamada de plena atenção extratexto (jamais realçarei a suposição de um tom irônico). Que seria de nós sem as nossas máscaras? Que seria de nós sem as aparências, sem as coisas palpáveis que nos fazem sentir falsamente seguros? Que seria de nós sem a certeza de que há velhos dogmas para nos direcionar nesse mundo atribulado de início de milênio; sem as cercas conceituais; sem as velhas catacreses da gaveta; sem os nossos limites?

Uma percepção desbloqueada possibilita-nos uma maior amplitude de visão, faz-nos descobrir novas veredas, novos cursos de água que polirão os sentidos momentaneamente adormecidos pelos pré-conceitos. Uma percepção desbloqueada ajuda-nos a alcançar outros planos, outras versões que subjazem nos domínios do absoluto. Enquanto passíveis de serem detectados, estes planos são vulneráveis. Ainda não estão definidos, mas serão conceituados a posteriori. Por enquanto, encontram-se perdidos na cena, ou seja, são sombras que atuam por detrás das cortinas. De certa forma, esses planos, esses sentidos, retratam as várias etapas de transição por que passam as nossas tentativas de desbloqueio; representam o conflito entre os conceitos e o sentido (único sentido) de absoluto que habitam em nosso interior. Ao desdobrarmos novos sentidos, vamos retirando, uma por uma, as peças do vestuário que recobre a nossa nudez. Isto equivale ao despojamento dos velhos conceitos, e o desnudamento é chocante, obsceno. O obsceno não é o ato de desnudar-se completamente, é o espaço de transição entre o “todo coberto” (total ignorância) e o “todo nu” (lucidez permanente). Apenas não alcançamos esta lucidez permanente porque sempre criaremos novas roupagens, novos conceitos, revestindo assim nossa insegurança. Para o Poeta, vale mais o espetáculo obsceno do desnudar-se. O que importa é “caminhar, colher florzinhas, espiar os ditos e os não ditos”, alcançar o mais recôndito de nosso interior, ver a nossa verdade, mesmo que isto seja um ato obsceno. Afinal, critica o poeta, alertando-nos quanto à nossa insegurança existencial: Que seria de nós sem as vestes cotidianas?

“Todavia, o amor é para toda a vida,
é para sempre e um dia e mais talvez:”

O Amor, principalmente para o Poeta do final do segundo milênio, é a plenitude de tudo, é a própria essência da vida. O Amor pode ser a Poesia, o próprio Amor e suas múltiplas manifestações; pode ser a Idéia, quando esta significar visão ampla; pode ser o Infinito, o Abstrato que não se conceitua, o Atemporal; pode ser o Absoluto, tema tão bem explorado por Gilberto Mendonça Teles em outro poema (que também será analisado aqui neste blog). “O amor te prende às palavras e te liberta”, o amor e seu caráter ambíguo, possibilitando diversas interpretações; o Amor que é senhor absoluto do espaço da liberdade. AMOR, POESIA, MUSA são palavras sinônimas no dicionário de Gilberto Mendonça Teles. Seu dever de honra é revelá-las num ato de amor.







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