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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: UM PRÉ-ANUNCIADOR? "E AGORA JOSÉ?"

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: UM PRÉ-ANUNCIADOR?
“E AGORA, JOSÉ?”

NEUZA MACHADO





Este sempre atualíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade, nesses nossos dias de crise monetária mundial, e em relação aos desmoronamentos sócio-políticos que estão a abalar os alicerces das abastadas e presunçosas elites, e levando ao sofrimento e à fome a maior parte da humanidade, poderá ser lido e interpretado com uma certa liberdade pelo leitor consciente. Os leitores-eleitos descobrirão que umas poucas elevadas cabeças – do Brasil e do Mundo –, ricamente orgulhosas de suas posses e poder, irão encaixar-se perfeitamente na “carapuça poético-reflexiva” de nosso genial escritor (uma vez que os verdadeiramente deserdados da sorte monetária estão, neste momento, a léguas de distância das leituras reflexivas).


Carlos Drummond de Andrade publicou este seu poema em meados do século XX (quando o mundo passava pela terrível Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil se debatia nas garras violentas da miséria extrema – da maioria de sua população). Naquele momento, éramos todos – nós os brasileiros da segunda metade do século XX – o tristonho “José” desse poema.


E para que o poema de Carlos Drummond de Andrade continue neste século XXI a “incomodar” reflexivamente os atuais leitores brasileiros (principalmente, aqueles que ainda não leram a criação poética do referido escritor), eu o postarei hoje, com muito prazer, certa de que os Internautas-Leitores que me honram com suas visitas a este meu Blog em especial saberão entender as mensagens que subjazem em suas entrelinhas.


Apreciem também, além da imprescindível leitura reflexiva, o poema “José”, de C. D. de Andrade, musicado e cantado por Paulo Diniz (singularíssimo cantor brasileiro atualmente pouco divulgado pela mídia partidária e elitista).


JOSÉ

Carlos Drummond de Andrade

E agora, José?

A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

CELSO FURTADO: TESES SUBJACENTES ÀS IDEOLOGIAS REVOLUCIONÁRIAS

CELSO FURTADO: TESES SUBJACENTES ÀS IDEOLOGIAS REVOLUCIONÁRIAS

NEUZA MACHADO



No último capítulo do livro Os Ares do Mundo publicado pela editora Paz e Terra, em 1991, Celso Furtado orienta os leitores na busca de uma bibliografia que ofereça uma boa base de leitura e reflexão para reconsiderar atitudes futuras sócio-culturais, apresentando trinta enfoques que permitem analisar e compreender as Ideologias Revolucionárias do passado.

Assinalo aos leitores do blog que, no item 12, pode estar a chave para entender por que a ascensão político-social-econômica da burguesia não foi acompanhada pelas camadas populares (que continuaram submissas ao poder da burguesia, apesar de terem tido a ilusão de terem partilhado da vitória contra a classe aristocrática). A burguesia “foi sempre um ramo das classes dominantes”, como bem avaliou Celso Furtado. Se à época da refrega entre aristocracia e burguesia – gigantes burgueses da Era Moderna em ascensão lutando com os gigantes aristocráticos da já finalizada Era Medieval –, os burgueses se saíram vencedores com a ajuda das classes desprestigiadas, atualmente, seria um erro pensar que, novamente, a classe operária se deixaria enganar numa guerra que visa somente os interesses dos que se acham os donos do poder.

É importante, neste momento, entendermos os significados diferenciados de “Governo Monárquico”, “Governo Imperial”, “Governo Ditatorial”, “Governo Populista” e, principalmente, “Governo Popular”. As quatro primeiras expressões estarão sempre relacionadas com as classes ricas dominantes e classes intelectuais pretensamente superiores (mesmo com os bolsos vazios) e continuarão sempre a querer impedir a evolução de um Governo dito Popular.

Apesar dos vinte anos já passados, em relação à publicação destas assertivas de Celso Furtado sobre “ideologias revolucionárias”, tais assertivas ainda são passíveis de atenção, na medida em que estejam relacionadas ao atual momento da política brasileira. Para a compreensão do que se observa hoje no Brasil, neste início de 2012, penso que uma leitura completa do livro de Celso Furtado será de vital importância.


TESES SUBJACENTES ÀS IDEOLOGIAS REVOLUCIONÁRIAS

Celso Furtado

1. A angústia humana segregou a ideia de Revolução: reconquista de uma perfeição perdida. Essa visão de Platão conheceu projeções no mundo cristão. O bon sauvage de Rousseau é um dos múltiplos retornos a esse mito.

2. O homem – segundo a interpretação que nos dá Hegel, em sua Estética, da Antígona de Sófocles – é e será um animal conflitivo, dado que o processo de socialização é necessariamente parcial, permanecendo a atividade humana aberta para a liberdade. Programar o humano como ser social não significa esgotá-lo como projeto. Os conflitos que surgem no indivíduo podem ter projeções sociais, o que faz do homem um ser potencialmente em revolta. É essa dimensão antropológica do pensamento hegeliano que se perde de vista à medida que a ideia de ruptura se circunscreve à esfera das relações de produção.

3. Segundo o mito dos “bons velhos tempos” que expõe Platão no Timeu, os homens foram originalmente governados diretamente pelos deuses, a ordem social prolongando a ordem natural. Na República, Platão demonstra por uma reductio ad absurdum que a vida social é um tecido de conflitos. De acordo com essa visão, a ruptura com o passado requer a destruição das instituições que impedem o homem de identificar-se com o coletivo, e que são o fundamento do individualismo: a família e apropriedade. Isso seria particularmente verdade no caso dos indivíduos responsáveis pela direção e segurança dos negócios coletivos.

4. Revolução não é apenas a desmontagem da estrutura social. Também inclui a reconstrução desta sobre novas bases. A antropologia filosófica de Platão nos oferece uma interpretação do fato político, partindo da natureza compósita da estrutura do homem. A vida social levaria sempre ao conflito: as forças antagônicas, provisoriamente contidas, tendem a voltar à tona. Nenhuma revolução é definitiva. Para Platão, a “força reativa do devenir” tende a minar a ordem racional estabelecida pelo homem.

5. A importância da Revolução Francesa como experiência histórica reside em que abriu espaço à confrontação de forças sociais conscientes, permitindo a percepção do Estado como armadura do sistema de dominação social. Melhor do que ninguém, Babeuf expressou essas ideias: a) a verdadeira Revolução não pode ser a substituição de um grupo de exploradores por outro; b) o povo não tem condições de assumir o poder, portanto deve haver uma fase de transição sob a forma de poder ditatorial exercido em nome do próprio povo, durante a qual seriam destruídas as bases do sistema de exploração do homem pelo homem.

6. As ideias de liberdade e de democracia constituem a principal herança política clássica.

7. A visão da luta de classes como motor da História é um subproduto intelectual da Revolução Francesa.

8. O projeto de reconstrução social que medra no século XIX funda-se em uma ideia de inspiração antropológica: a da valorização do irracional em Fourier. A civilização seria inseparável de um sistema de repressão.

9. A síntese de Marx, a partir de Hegel, introduz uma redução sociológica: a alienação surge da divisão de trabalho, condição necessária para que formas sociais superiores sejam alcançadas.

10. Segundo essa síntese, a Revolução é engendrada pelas condições sociais, pela luta de classes, se bem que a consciência de classe não brote espontaneamente.

11. A insegurança dos indivíduos é traço básico da sociedade capitalista. A consciência de classe não decorre da simples percepção da própria posição social, percepção que possuía o servo; ela somente se manifesta quando existe percepção dos antagonismos geradores da insegurança pessoal. A busca de segurança abre caminho a novas formas de organização social.

12. A ideia de que classe operária é o vetor de novo sistema de valores funda-se em simples analogia com a ascensão da burguesia. Mas esta última foi sempre um ramo das classes dominantes, sem vínculos orgânicos de divisão social do trabalho com a classe feudal.

13. A dinâmica da luta de classes, ao transformar a massa trabalhadora em mercado consumidor de crescente importância, criou as condições de sua integração cultural no mundo burguês.

14. A luta de classes influenciou em duas direções: a) a visualização do desenvolvimento das forças produtivas como elemento criador de tensões que engendram formas sociais superiores; à medida que as tensões foram sendo canalizadas, o capitalismo “anárquico” foi substituído pelo “organizado” e as funções do Estado na ordenação econômica e na administração do “bem-estar social” adquiriram crescente importância; b) a percepção dos valores substantivos como epifenômenos – eflorescência do desenvolvimento das forças produtivas –, o que cerceou a formação de uma visão global do homem, de uma antropologia não-reducionista.

15. A versão marxista da dialética de Hegel produziu a ideia de que os obstáculos institucionais (gerados pelas relações de produção) ao desenvolvimento das forças produtivas conduzem a rupturas violentas. Essa ideia fundamentou as doutrinas revolucionárias voluntaristas que visam à destruição das instituições pré-capitalistas consideradas como freio à acumulação e ao desenvolvimento. Foi com base nesta doutrina que se realizaram os grandes trabalhos de engenharia social do século XX.

16. A Revolução somente se faria possível quando as classes exploradas e oprimidas tomassem consciência da própria situação, o que pressupõe a existência de uma “teoria” capaz de demonstrar que a ordem social presente funda-se na dominação da maioria por uma minoria (ou por agentes estrangeiros) e que essa dominação é obstáculo ao pleno desenvolvimento das forças produtivas. A Revolução é feita contra a exploração e o atraso, e como a massa não está preparada para autogovernar-se, uma vanguarda esclarecida e eficaz deveria assumir esse papel. Estamos, portanto, de volta à ideia central de Babeuf. Lenin não fez mais do que elaborá-la, codificá-la e levá-la à prática com êxito.

17. A crítica principal a essa doutrina funda-se nas ideias dos anarquistas, principalmente Bakunin, segundo os quais um sistema autoritário não pode dar origem a uma sociedade sem classes. Um tal sistema dara à luz, necessariamente, novas estruturas de privilégios. Também cabe assinalar a insuficiência da percepção do fenômeno burocrático como freio à expansão das forças produtivas.

18. Se a reconstrução social pós-revolucionária faz-se no sentido de eliminar os obstáculos à acumulação, as desigualdades sociais tendem a recompor-se ali onde elas favorecem o processo acumulativo.

19. O projeto leninista de reconstrução social assumiu a forma de ampla mudança nas relações de produção: o objetivo limite era organizar o emprego da força de trabalho de forma que a criação de excedente pudesse ser controlada em sua totalidade por autoridade central. Um triplo objetivo é visado: a) utilização plena dos recursos disponíveis; b) redução das desigualdades nos padrões de consumo dos distintos grupos sociais; c) obtenção do máximo de acumulação compatível com os dois objetivos anteriores. Para alcançar esses fins, fez-se necessário, em primeiro lugar, construir um sistema produtivo capaz de alimentar um forte processo de acumulação. No caso da União Soviética, a realização desse projeto foi facilitada pela existência de uma base ampla de recursos naturais, pela preexistência de um núcleo industrial importante, pela possibilidade de extrais um amplo excedente no setor agrícola e pela aquisição maciça de tecnologia do exterior. Sob este último aspecto permaneceu uma forma de desenvolvimento dependente.

20. A reconstrução social assumiu formas diversas de legitimação nos países de desenvolvimento retardado. Em Cuba, ela se apresentou como um movimento de libertação nacional. Na Etiópia, como um esforço de preservação da unidade nacional.

21. De maneira geral, nos países de capitalismo incipiente ou de penetração desigual, os projetos de engenharia social produziram, de imediato, um uso mais intensivo dos recursos produtivos já disponíveis. E também permitiram o exercício de um comando mais eficaz sobre a utilização do excedente, bem como uma ativação das forças sociais.

22. Nesses países de capitalismo retardado, colocou-se imediatamente o desafio de transformação do Estado e da obtenção de novas formas de legitimação do poder. Dificuldades especiais foram enfrentadas nos países do Leste europeu, tutelados pela União Soviética, onde a legitimidade do poder não teve bases políticas, ficando na total dependência de avanços sociais e econômicos.

23. Por todas as partes, o projeto de reconstrução social enfrentou dificuldades sensivelmente grandes no setor agrícola. A organização coletiva de produção agrícola somente se torna viável a um nível de acumulação muito mais elevado do que aquele que havia sido alcançado nesses países.

24. A Revolução Cultural chinesa foi uma tentativa de utilização do mito da ditadura do proletariado para debilitar o sistema tradicional da cultura e reforçar o poder central de natureza essencialmente burocrática.

25. Nas experiências de engenharia social o Estado comportou-se sempre como instituição monitora da formação e da utilização do excedente, o que com frequência inibiu o desenvolvimento da sociedade civil.

26. Na agricultura coletivista colocam-se problemas elementares: como controlar sem centralizar? Como centralizar sem reduzir os estímulos? Como delegar o poder de decisão sem perder o controle da formação do excedente e, mesmo, da alocação deste?

27. A estrutura da empresa capitalista provém das organizações militares: ela deve assegurar uma estrita disciplina no trabalho, o que apenas se consegue com rígida hierarquização de funções. A opção à empresa capitalista é a organização fundada na unidade de propósitos, cujo tipo ideal é a autogestão. Mas como conciliar esta com a preservação do comando sobre a formação do excedente? Se o objetivo é acelerar a acumulação, a tendência será insistir na concentração do poder. É o que veio a ser conhecido como “modelo soviético”. A evolução social passa a ser comandada pela lógica da acumulação. Demais, a empresa hierarquizada pressupõe um eficiente sistema de incentivos que necessariamente conduz a ampla diferenciação salarial entre os que nela trabalham. O poder sindical, neste caso, não pode assumir os interesses da empresa, a menos que tenha condições para interferir na sua política de preços. A conciliação entre objetivos sociais e econômicos reintroduz sub-repticiamente a lógica do mercado e, no caso dos países atrasados, a dependência externa.

28. Estava embutido nas utopias que acionaram os movimentos sociais do século XX um modelo de sociedade voltada para a satisfação prioritária das necessidades fundamentais do homem. A visão antropológica subjacente apontava, portanto, para um homem tendente a saturar suas necessidades, a alcançar a plenitude, a estancar a sua angústia. Perdia-se de vista a “força reativa do devenir”.

29. A instabilidade social inerente ao capitalismo engendra insegurança ao nível do indivíduo e reduz a legitimidade das estruturas de privilégios. Contudo, isso não desacredita o produtivismo que está na base da civilização capitalista.

30. O formidável trabalho de engenharia social realizado neste século fundou-se em doutrinas diretamente derivadas das experiências revolucionárias dos dois séculos anteriores. De uma época de revoluções espontâneas passou-se a outra, de revoluções fruto de um voluntarismo guiado por doutrinas codificadas. Assim, pela primeira vez a História assumiu a forma de desdobramento de projetos concebidos a partir de elucubrações teóricas. Após a engenharia social – um sonho de Prometeu que terminou em pesadelo –, por que caminho tentarão avançar os homens em sua busca perene da felicidade?

Paris, julho de 1980

(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 328 - 333)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

CELSO FURTADO: DE GAULLE E O NOVO POLICENTRISMO

CELSO FURTADO: DE GAULLE E O NOVO POLICENTRISMO

NEUZA MACHADO




Celso Furtado, neste capítulo de seu livro Os Ares do Mundo editado em 1991 (é importante que se registre a data desta análise de Celso Furtado, pois já se passaram 20 anos desde então), relembra os anos em que fixou residência na França (em virtude de seu exílio), desenvolvendo também, ao longo de sua explanação, a liderança de Charles de Gaulle em relação à recuperação do espaço francês na arena internacional, pós a Guerra Fria de caráter geral que teve seu auge em princípios dos anos 60.

PARA A REFLEXÃO DO LEITOR, DEPOIS DA LEITURA DO CAPÍTULO, PEDE-SE UMA REDOBRADA ATENÇÃO PARA COM A FINALIZAÇÃO DO TEXTO DE CELSO FURTADO:

“Ao discutir o tema do poder econômico em termos o mais possível amplos eu me empenhava em fazer que os nossos problemas* fossem encarados como de interesse geral, devendo todos os povos contribuir para sua solução. Era necessário fazer compreender que somos todos interdependentes, que as soluções têm que ser globais. Eu tinha presente no espírito o bloqueio criado no mundo universitário norte-americano pela compartimentação de temas e problemas. Não desejava ser visto como um especialista em Brasil, nem mesmo em América Latina. Sabia que nada se compreende de Terceiro Mundo se não se parte de uma visão global de economia internacional, e em particular da dinâmica das economias dominantes. A verdade é que, para perceber o que se passa na América Latina, é essencial partir do estudo dos Estados Unidos, e pelo que eu saiba não existia então nenhum centro dedicado ao estudo desse país como um sistema de poder mundial, nem mesmo na Europa ocidental.” (Celso Furtado)

* “nossos problemas” = problemas do Brasil e da América Latina nos anos tenebrosos que assinalaram a segunda metade do século XX.


DE GAULLE E O NOVO POLICENTRISMO

Celso Furtado

Nos Estados Unidos, meu campo de ação confinava-se no mundo universitário. E o clima geral era de pouca simpatia a alguém que se fizera notório por atividade ditas “subversivas” na América Latina. O inconformismo de um latino-americano tendia a ser interpretado como hostilidade aos Estados Unidos, cujo governo assumia em toda a região, exceto em Cuba, a defesa do status quo social.

Na França, as possibilidades de ação eram mais amplas; inexistia aquela separação entre a vida intelectual e a atividade política característica dos Estados Unidos. Demais, era a época em que, sob a liderança de Charles de Gaulle, os franceses procuravam recuperar espaço na arena internacional. A Guerra Fria alcançara seu paroxismo na crise dos foguetes de Cuba, em 1962, e conhecia novos desdobramentos com o conflito do Vietnã. Enquanto a Inglaterra mantinha uma atitude caudatária que excluía toda iniciativa, empenhando-se na defesa dos restos de sua influência imperial, e a Alemanha se concentrava no formidável esforço de reconstrução de seu poder econômico, comportando-se como um “anão político” – uma mente lúcida como Karl Jaspers chegou a afirmar que os alemães deviam comportar-se como se sua pátria fossem os Estados Unidos –, a França gaullista levantava-se na ponta dos pés e resgatava na plenitude sua soberania nacional.

As rachaduras que começavam a se manifestar no sistema de poder americano – o dólar iniciava então o seu declínio como moeda-reserva – são habilmente exploradas por de Gaulle com gestos espetaculares, como o reconhecimento do governo de Mao Zedong e a desvinculação das forças francesas, em particular as estacionadas na Alemanha, do comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Neste último caso, não se tratou de desfazer a Aliança Atlântica, mas de recuperar autonomia de ação e assumir a responsabilidade do próprio destino.

Em realidade de Gaulle explicitava as implicações da evolução da tecnologia militar que estava apagando a diferença entre grande e pequeno poderes termonucleares. Passava a prevalecer a doutrina chamada de “ferrão de abelha”, segundo a qual o que importa na guerra nuclear é menos vencê-la do que ser suficientemente forte para golpear o adversário de forma que este, mesmo vitorioso, fique irremediavelmente mutilado. Assim, o custo da vitória deve ser suficientemente grande para desencorajar qualquer agressor. Alcançada essa massa crítica de poder, a França já não tinha por que submeter-se a um sistema de decisões nas relações internacionais capaz de arrastá-la automaticamente a uma confrontação termonuclear. Alguns precedentes, como o da Baía dos Porcos em Cuba, haviam deixado claro que os americanos estavam dispostos a aceitar elevados riscos na confrontação com a União Soviética. As decisões tomadas por de Gaulle em 1965-1966 colocaram a França em posição privilegiada: preservava-se a Aliança Atlântica, pelo menos enquanto persistisse a confrontação com o Pacto de Varsóvia, mas o sistema de decisões seria suficientemente flexível para que os riscos que a França assumia fossem apenas aqueles que seu governo consentisse em aceitar explicitamente.

Os Estados Unidos se comportavam como se prescindissem do resto do mundo: voltados para o seu imenso mercado interno, satisfaziam-se com uma imprensa provinciana e círculos universitários profissionalizados. Esse quadro apenas começava a modificar-se. Em contraste, na França desde o século XVIII existe um contínuo entre atividade intelectual e o mundo político e social. Daí que o debate de ideias nesse país “conte mais” e mais facilmente assuma a forma de uma abertura para o exterior. Assistia a razão a de Gaulle quando afirmava: “Ninguém nos dá lição de universalismo”.

Não surpreende, portanto, que Paris seja uma caixa de ressonância sem par em todo o mundo. Mas, como já observava Balzac, tudo nessa cidade é rapidamente moído, usado, superado. Daí a inconveniência de expor-se demasiado nessa vitrine. Quando lá aportei, em junho de 1965, com o plano de instalar-me por longo período, fui residir em um subúrbio modesto, na região sul da cidade, onde ninguém me conhecia senão pelo fato – assunto de comentários no clube que passei a frequentar para jogar tênis – de que mantinha luzes acesas até tarde da noite. Não apenas me isolava para trabalhar, convencido de que a luta que me cabia travar era no plano das ideias, mas também para evitar excessivo envolvimento na diáspora brasileira e latino-americana, então em rápido crescimento.

A França se transformara consideravelmente nos quase dois decênios transcorridos desde que eu lá estudara como universitário. De Gaulle marcara o país recentrando-o e restaurando-lhe a consciência de um destino histórico próprio. A diferença maior com o passado estava, entretanto, na importância crescente que se começava a atribuir à solidariedade europeia na visão do mundo.

Para mal ou para bem, a França chegara a acumular considerável atraso vis-à-vis dos países que formam a vanguarda da civilização material moderna, o que era particularmente visível no que diz respeito a equipamentos sociais. Certo, não se produziram nesse país os excessos da “destruição criativa” que em outras partes levaram à perda de parcela importante da herança cultural. Mas havia que pensar em abrir-se ao exterior, em expor-se à concorrência externa, em abandonar as ilusões do protecionismo “imperial”. Essa transição foi facilitada pela política de integração no Mercado Comum Europeu.

Na boa tradição francesa, o redirecionamento no processo histórico deu-se de forma cartesiana, sem perder de vista os objetivos gerais e sem deslizar na cacofonia. Foi realizado um esforço considerável em pesquisa tecnológica em setores estratégicos como o nuclear, o espacial e aeronáutico, o energético e petroleiro, o da mecânica de precisão, o da química fina e, especialmente, o da informática.

O esforço de pesquisa foi liderado e executado em boa parte pelo Estado, ou com seu apoio financeiro. A planificação indicativa permitiu conciliar abertura para o exterior, criação de novos espaços para a iniciativa privada, convergência de propósitos e continuidade de ação. Também à planificação deve-se a relativa harmonia alcançada entre o desenvolvimento agrícola e o do conjunto das atividades econômicas. O despovoamento do campo na Inglaterra, em auras de uma irracionalidade ditada apenas pelo mercado, evidenciava os riscos sociais de um laisser-faire extremado. A preservação do setor agrícola como forma subsidiária de emprego tem sido um traço marcante do desenvolvimento recente da Europa continental.

Nos primeiros vinte anos do pós-guerra a França manteve uma taxa excepcionalmente alta de crescimento e conheceu importantes mutações em sua estrutura econômica, dobrando o coeficiente de inserção no comércio internacional e alcançando posições de vanguarda tecnológica em setores de relevo. Esse desempenho favorável da economia francesa deu-se a despeito do custo elevado da liquidação concomitante de um arcaico império colonial. A liquidação tardia deste acarretou aumento da oferta de mão-de-obra na própria França, o que pressionou no sentido de tornar indispensáveis maiores investimentos sociais, mas também no de conter a elevação do custo dessa mão-de-obra. Uma relativa elasticidade da oferta do fator trabalho, conjugada a forte taxa de investimento, responde pela tendência persistente a certa concentração da riqueza e da renda, que singulariza a França no grupo de países de mais alto nível de desenvolvimento.

A crise energética de começo dos anos 70 teve amplo reflexos no comportamento das economias mais industrializadas, pois ao provocar maior abertura externa reforçou a posição das grandes empresas, levando a maior concentração de poder econômico. Mais ainda: a redobrada ênfase na competitividade internacional veio intensificar o processo de robotização, o que impôs maior margem de desemprego crônico. Abria-se novo ciclo em que tudo se subordina à competitividade internacional, passando a segundo plano as preocupações com o pleno emprego da mão-de-obra. A pesquisa tecnológica, inclusive no setor de armamentos, será igualmente posta a serviço da expansão das exportações.

Não me foi difícil perceber o quanto é pequeno o espaço que tem para ocupar, na França, um intelectual do Terceiro Mundo, não obstante a simpatia e boa vontade com que possa ser tratado. Certo: no momento a que estou me referindo, a presença dos Estados Unidos na esfera internacional desbordara por todos os lados, fazendo-se por demais incômoda. A simpatia que despertava a América Latina em parte era reflexo da repulsa que provocava a dominação que sobre ela exerciam empresas e autoridades norte-americanas. Estávamos perto do desembarque dos mariners em São Domingos. Nisso havia certamente um elemento de mauvaise conscience da parte dos franceses, dado que os americanos tinham sido os maiores críticos da política colonial da França, de cujas sequelas eles eram herdeiros no Vietnã.

Eu havia percebido com clareza que em um mundo dominado por dois gigantes antagônicos nós estávamos condenados a um estreito satelitismo político, visto que a independência com respeito a um dos dois polos levava necessariamente à subordinação ao outro. Assim, a evidência de que o próprio avanço da tecnologia militar estava possibilitando uma saída policêntrica – o que era confirmado pela linha estratégica adotada pela França – me parecia indicar que entrávamos em uma fase em que os países do Terceiro Mundo disporiam de mais espaço de manobra. De Gaulle foi o primeiro estadista a perceber essa mudança no quadro político mundial. O que explica as inúmeras viagens que fez a países da esfera de influência soviética e do Terceiro Mundo – inclusive a nove da América Latina – no correr da segunda metade dos anos 60.

Havia, portanto, espaço para iniciativas de denúncia do maniqueísmo que dominava a política internacional.

Os dois artigos que publiquei em Le Monde, em janeiro de 1966, sobre “A Hegemonia dos Estados Unidos e a América Latina”, alcançaram considerável repercussão e foram reproduzidos, total ou parcialmente, na imprensa de vários países. Dentro da mesma temática, em particular expondo a evolução estrutural da economia norte-americana, onde as grandes empresas assumiam novas formas e abarcavam espaços geográficos crescentes, publiquei ensaios em revistas de grande penetração, como Esprit e Les Temps Modernes, os quais também foram traduzidos para vários idiomas.

A repercussão dessas publicações traduzia-se em inúmeros convites para pronunciar conferências dentro e fora da França. Eu dava preferência às universidades em que havia centros de estudos latino-americanos, posto que debates que neles se realizavam constituíam pontos de partida de projetos de pesquisa com amplo efeito multiplicador. O editor Calmann-Lévy, da França, escreveu-me solicitando que desenvolvesse os artigos do Le Monde, o que fiz sem demora. O livro resultante teve ampla divulgação, logo traduzido para várias línguas.

Ao discutir o tema do poder econômico em termos o mais possível amplos eu me empenhava em fazer que os nossos problemas fossem encarados como de interesse geral, devendo todos os povos contribuir para sua solução. Era necessário fazer compreender que somos todos interdependentes, que as soluções têm que ser globais. Eu tinha presente no espírito o bloqueio criado no mundo universitário norte-americano pela compartimentação de temas e problemas. Não desejava ser visto como um especialista em Brasil, nem mesmo em América Latina. Sabia que nada se compreende de Terceiro Mundo se não se parte de uma visão global de economia internacional, e em particular da dinâmica das economias dominantes. A verdade é que, para perceber o que se passa na América Latina, é essencial partir do estudo dos Estados Unidos, e pelo que eu saiba não existia então nenhum centro dedicado ao estudo desse país como um sistema de poder mundial, nem mesmo na Europa ocidental.

(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 143 - 148)

domingo, 8 de janeiro de 2012

CELSO FURTADO: O NOVO CONTEXTO - O NOVO CONTEXTO DO BRASIL

CELSO FURTADO: O NOVO CONTEXTO - O NOVO CONTEXTO DO BRASIL

NEUZA MACHADO


Continuando a re-visitar os pensamentos de Celso Furtado, em sua versão do que ocorreu no Brasil, a partir de 1964 até ao final dos anos oitenta, permito-me postar a continuação do texto anterior, aqui publicado em 05-01-2012 – “UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL” –, consciente de que os seguidores deste meu blog, e os que por aqui passarem rapidamente e se interessarem pelo assunto, saberão repensar estas importantes informações de nosso ainda recente passado terceiromundista.

Não será demais realçar que as informações legadas aos brasileiros neste importantíssimo livro, editado em 1991, foram pensadas e repensadas e conscientemente publicadas por um intelectual que foi obrigado a se afastar do Brasil e, inevitavelmente, a respirar os “ares do mundo”, durante a sua peregrinação imposta pela ditadura, mas que, nem por um minuto, deixou de pensar em sua terra de origem e nos milhões de brasileiros que aqui viviam em extrema penúria.


O NOVO CONTEXTO

Celso Furtado

Algumas coisas me pareciam claras. Afigurava-se-me evidente que o processo de urbanização-industrialização não tivera correspondência na evolução dos estratos sociais que, de uma outra forma, controlavam os centros do poder político. Tampouco me escapava que a precoce emergência de uma sociedade de massas criara sérios obstáculos ao funcionamento das instituições políticas nos moldes adotados no Brasil. Também estava fora de dúvida que os militares puderam legitimar-se apresentando-se como árbitros – debeladores da subversão rampante, restauradores da “democracia”.

Mas não se via claro em que direção se marchava. Será que os militares intervieram, à semelhança de 1945, para dar uma freada no populismo, na qualidade de simples gendarmes das classes dominantes tradicionais? Meu ponto de vista era outro. De meus contatos com os quadros dirigentes da Escola Superior de Guerra ficara-me a convicção de que ali se formara um centro de pesquisas com a pretensão de pensar o Brasil, e que esse pensamento já se encontrava em estado operacional sob a forma de um projeto de “organização nacional”. Esse projeto sofrera forte inflexão com o advento da Revolução Cubana, deslocando-se do eixo do desenvolvimento para o da segurança. A influência da doutrina norte-americana da “contra-insurgência” fora considerável e contaminara toda a linha de pensamento antes voltada prioritariamente para a ideia de desenvolvimento nacional.

O novo enfoque tudo subordinava à premissa de que vivemos uma confrontação em escala planetária, a qual obedece às regras de um conflito bélico. A morfologia desse conflito podia ser nova, mas sua essência derivava da velha lógica da guerra. Mais importante ainda: em razão do impasse termonuclear, o objetivo dessa guerra tendia a ser cada vez mais o debilitamento do inimigo interno, sua desarticulação. A “guerra revolucionária”, que se imaginava estar em processo adiantado na América Latina – o inimigo realizara avanços significativos com a tomada do poder em Cuba e a instalação de focos permanentes de guerrilhas na Guatemala, na Venezuela, na Colômbia e no Peru –, constituía a referência central na formulação das políticas nacionais.

Essa nova visão levaria os militares brasileiros a rever o “projeto de organização nacional”, cuja referência básica passava a ser o problema da segurança, com ênfase na ideia de “insurgência”. Em um documento reservado da Escola Superior de Guerra, dizia-se: “a impressão crescente nos Estados Unidos é de que, até o fim do século, não haverá um enfrentamento direto com a URSS, e sim com o comunismo internacional, em diferentes áreas da Ásia, África e América Latina”. Dessa forma, o cenário do conflito mundial era arranjado de forma que cabia a nós, povos do Terceiro Mundo, ocupar a linha de frente. Estávamos, portanto, mais expostos do que os principais contendores, aqueles que disputavam a hegemonia planetária. No mesmo documento, dizia-se: “o êxito do comunismo em qualquer país da América Latina significa ameaça – maior ou menor – à segurança dos Estados Unidos e do Brasil”. Dentro dessa nova visão, o Brasil deveria apoiar a criação de uma Força Interamericana de Paz e “reestruturar, rearticular e reequipar suas Forças Armadas, tendo em vista particularmente o seu emprego na Guerra Revolucionária no Brasil e na América Latina”. Era uma doutrina que pretendia legitimar a intervenção, inclusive militar, nos demais países da América Latina, bem como a utilização de tropas estrangeiras no Brasil.

Refletindo sobre esses pontos, na época ainda não explicitados cabalmente, eu me inclinava a ver na tomada do poder civil pelos militares brasileiros algo distinto do ocorrido no passado entre nós e nas outras nações latino-americanas. Reconhecida a prioridade do problema da confrontação mundial, a segurança dos Estados Unidos teria forçosamente de prevalecer sobre tudo o mais. Era de esperar, todavia, uma contrapartida de apoio financeiro suficientemente amplos para modificar a situação de estrangulamento externo que vinha freando o desenvolvimento brasileiro. Os militares se apresentavam como fiadores desse novo relacionamento com os Estados Unidos, que somente se efetivaria caso fosse implantada uma ordem institucional interna por eles tutelada. Cabia pensar em um pacto dos militares com segmentos das classes dirigentes, de preferência aqueles mais voltados para a modernização, vale dizer, os grupos empresariais ligados às indústrias que compõem o “poder nacional”. No documento já referido, incluía-se como um dos principais objetivos “intensificar a política de industrialização, com prioridade para as indústrias mais ligadas à Segurança Nacional”.

A tutela exercida pelos militares sobre o governo tornava-se pré-requisito para conter as forças distributivas de que se alimentava o populismo, e assegurar que a visão de confrontação planetária viesse a prevalecer na formulação da política externa brasileira. Não era difícil perceber que os requisitos para a retomada do crescimento começavam a se explicitar dentro de um quadro em que a tutela militar se configurava como elemento essencial. Quanto mais aprofundava a análise, mais se fazia claro para mim que o Brasil penetrava em uma fase de sua evolução política na qual não havia espaço para que as forças de base popular se expressassem , e onde a presença tecnocrática teria peso crescente. A perfeita sincronia dos militares brasileiros com o governo norte-americano vinha de ser comprovada pelo embaixador Lincoln Gordon em palavras entusiastas pronunciadas no recinto da agora altamente prestigiada Escola Superior de Guerra, nos dias imediatos ao golpe de 31 de março de 1964: “Não me surpreenderia se os historiadores do futuro assinalarem a Revolução Brasileira como a mais decisiva vitória da liberdade na metade do século XX”. Era evidente que os acontecimentos no Brasil estavam sendo vistos como, acima de tudo, um episódio de guerra em escala planetária em que estavam empenhados os Estados Unidos.

Na medida em que avançava em minha análise do processo político brasileiro, mais me convencia de que um corte definitivo ocorrera em minha vida. Não porque devesse enfrentar dificuldades de várias ordens, comuns aos que vivem no estrangeiro como apátridas, dificuldades que podem chegar a ser consideráveis. Mas porque o sentido de muitas coisas se modificara bruscamente para mim. Com efeito: a opção que fizera de dedicar-me ao estudo das ciências sociais, em particular da economia, fora fruto de meu desejo de entender o Brasil e também de tentar contribuir para dar um sentido de justiça social à ação de seu governo.

O reconhecimento de que a sociedade brasileira estava marcada pela herança das sequelas da escravidão e pelas taras de um processo de colonização em que o controle do acesso às terras fora utilizado para explorar a massa da população, ao ponto de desumanizá-la, e a visão de que o país acumulou considerável atraso no quadro de uma civilização implacável com os retardatários foram fator decisivo na construção de meu projeto de vida. E a ilusão, que chegou a dominar meu espírito em certo momento, de que uma feliz conjuntura internacional – consequência da grande depressão dos anos 30 e do conflito mundial dos anos 40 – abrira uma brecha pela qual quiçá pudéssemos nos esgueirar para obter uma mudança qualitativa em nossa história, agora se desvanecia. O Brasil continuaria prisioneiro de suas estruturas anacrônicas, crescendo em benefício de uma minoria privilegiada, acrescentando cada ano pelo menos um milhão de pessoas à sua imensa legião de desnutridos, desabrigados, desvalidos.

Não me fugia a ideia de que a História é um processo aberto, sendo ingenuidade imaginar que o futuro está cabalmente contido no passado e no presente. Mas, quando toda mudança relevante é fruto da interveniência de fatores externos, estamos confinados ao quadro da estrita dependência. E os povos que se privarem de toda margem de ação para construir o próprio destino – para romper a cadeia de forças que moldaram seu passado – não têm propriamente história. As tendências que se manifestavam no Brasil levavam a pensar que as mudanças significativas já não seriam fruto da ação de fatores endógenos. Assumíamos uma situação de dependência – como tantos povos que no passado aceitaram a vassalagem que lhes assegurava aparente proteção – com plena consciência de que estava em jogo uma confrontação mundial na qual pouco podíamos influir e que condicionava nosso destino. Os novos líderes do país pareciam partir da hipótese de que as linhas gerais desse quadro estavam definidas num horizonte de tempo que se estendia até o fim do século. Como nos cabiam responsabilidades grandes no esforço de conter a “luta revolucionária” que se manifestava nos países nossos vizinhos, a possibilidade de uma autêntica cooperação com esses países no plano da integração dos mercados se reduzia. Professar a doutrina da intervenção aberta na casa do vizinho é fechar a porta à ideia de autêntica integração dos espaços econômicos.

Não achava eu propriamente que constituíssemos uma “geração perdida”, e tampouco admitia que nossos esforços houvessem sido inteiramente inúteis. Algo sobraria de significativo do que havíamos feito. Mas como desconhecer que a nossa geração logo seria vista como superada? Nossa esperança de que o quadro da dependência que nos constrangia pudesse ser rompido – o que havia ocorrido no caso do Japão no curso de uma geração –, de que nosso desenvolvimento viesse a ser mais e mais fruto de decisões internas, de que nossa política daria prioridade ao social, de que escaparíamos da armadilha do subdesenvolvimento sem exigir, da população pobre, sacrifícios adicionais – nossa esperança seria agora vista como devaneio idealista, hipótese sem substância, doutrina anacrônica.

Essa passagem da visão histórica para perspectiva pessoal nem sempre se faz sem trauma. Uma geração superada raramente percebe de imediato que a corrente dominante da História mudou de rumo, que sua atuação se transformou em pura gesticulação, e seu discurso cacofonia para auditórios pouco atentos. Ainda assim, a geração superada pode guardar extraordinária lucidez e, por isso, contribuir para que a memória histórica não se dilua completamente. Os movimentos que triunfam, em particular aqueles que conduzem à tomada do poder pela força, tendem a mergulhar os seus líderes em profunda obtusidade, mesmo que isso não reduza no tempo o papel histórico que desempenham.

Minhas longas conversa com José Medina me ajudaram a perceber que a situação brasileira somente podia ser entendida se colocada no quadro de conjunto das Américas, “no Hemisfério”, como gostam de dizer os norte-americanos. Não era sem razão que uma quartelada no Brasil, que tantas já conhecera, era vista como um grande acontecimento político pelos corifeus de Washington. A chave de tudo parecia estar em Cuba, essa ilha cuja história ficara defasada em razão da incapacidade dos espanhóis a fins do século XIX para inserir-se na contemporaneidade. Os cubanos, já iniciada a segunda metade do século XX, se empenharam na luta para contemplar a construção de seu Estado nacional. Fidel Castro fora claro a este respeito, quando declarou, ainda na Sierra Maestra, que seu “destino era confrontar os ianques”.

Convém recordar que a famosa “emenda Platt”, incorporada à constituição cubana, assegurava aos americanos o direito de intervir nos assuntos internos da ilha, e que essa emenda foi suspensa por decisão unilateral no governo de F. D. Roosevelt, no quadro da “boa vizinhança”. Ora, essa luta pela afirmação de um Estado nacional foi arrastada pelas águas turbulentas da Guerra Fria. Que Kruchov haja levado o mundo à beira de uma confrontação nuclear para consolidar a independência cubana vis-à-vis dos Estados Unidos é fato único na história contemporânea, que só encontra explicação na psicologia do líder soviético, inclinado a golpes espetaculares e a subestimar o adversário. Mas a partir dessa ato quixotesco, que resultou em humilhação para os soviéticos, todo movimento visando a reduzir ou minorar a dependência externa de um país latino-americano tendeu a ser visto em Washington como deslocação de uma peça na confrontação com a União Soviética.

Como o apoio dado a Cuba estava longe de poder ser estendido a outros países da região – os meios de que dispunham os soviéticos não davam para tanto –, o resultado final foi o reforço considerável da tutela que exercem os Estados Unidos sobre as nações latino-americanas. Cuba foi condenada ao isolamento e não teve como escapar a uma estreita dependência da União Soviética, e os demais países latino-americanos se viram submetidos a estreita surveillance, com risco de internacionalização de seus conflitos internos. Somente assim se explica que a intensificação do confronto entre populistas e conservadores ocorrida em 1964 no Brasil – país que nem sequer dispunha de partidos de esquerda de alguma significação – haja mobilizado a esquadra americana e suscitado extrema tensão em Washington.

Era essa a nova moldura dentro da qual tínhamos de nos mover. Os grupos de extrema esquerda, os movimentos de guerrilha podiam despertar simpatias enfrentando as ditaduras militares, mas não conduziriam a nada concreto, quando não fosse ao endurecimento das forças de direita e ao florescimento da Internacional dedicada ao combate aos movimentos subversivos.

Minhas conversas com José Medina contribuíram para moderar meu otimismo congênito. Nós, da periferia – parecia a ele –, tínhamos do mundo uma visão distorcida. Carecíamos de perspectivas para globalizar, para captar o sentido dos processos que determinam o curso dos acontecimentos em que estamos envolvidos. Não nos apercebemos de que somos, cada vez mais, peças de uma engrenagem abrangente. A erupção do caso cubano nos empurrara brutalmente para a zona de maior turbulência. Seríamos doravante escrutinados de muito mais perto. Como observara Richard Nixon, a esra em que a América Latina suscitava ideias amenas – “siesta, mañana, cha-cha-cha”, em suas próprias palavras – fora encerrada definitivamente. Nossa história se desprovincianizava, malgrado nós mesmos. Estávamos agora sendo integrados em correntes que envolviam o planeta nas direções leste-oeste e norte-sul. Teríamos de nos preparar para agir nesse novo quadro.

Essas reflexões fizeram-me consciente de que tudo se tornara mais complexo, de que eventos em que estávamos envolvidos deviam ser observados de perspectiva mais ampla; havia que captar o sentido da longa duração, como Fernand Braudel. Assim, fui-me convencendo da conveniência de ganhar certa distância com respeito aos acontecimentos do dia-a-dia – do curto prazo, como dizem os economistas –, do pouco que as pessoas em condições similares às minhas podiam fazer para influenciar o quadro político brasileiro. Ocorrera um terremoto e teria de passar algum tempo para que uma outra paisagem se esboçasse.

O que importava no momento era buscar o sentido do acontecer histórico, em sua dimensão mais ampla, vislumbrar a lógica do que ocorria nos grandes centros de poder. Era contribuir para que a próxima geração no Brasil viesse a exercer o poder com melhor percepção da realidade mundial. Havíamos sido incorporados ao processo de globalização da História aos empurrões e perdêramos a inocência dos que são protegidos pela ignorância. Ora, quem supera a ignorância ganha graus de liberdade. O aprendizado podia ser longo, mas, cedo ou tarde, uma nova geração terá de perceber que o Brasil fora arrastado a uma guerra errada. Seu maior problema não era a “insurgência”, e sim a fome; por outro lado, as relações econômicas internacionais estavam em rápida evolução, independentemente da confrontação política alimentada pela Guerra Fria. Estávamos aprisionados dentro de círculo de giz que alianças impostas nos faziam crer intransponível. Algo podia ser feito para ajudar a geração vindoura a abrir seu caminho. Era imperioso, por exemplo, manter abertos os canais de circulação de informações, e contribuir para que esses canais fossem adequadamente utilizados. Enfim, cumpria adotar o que Lindell Hart chamou de indirect approach: evitar a confrontação quando o inimigo é evidentemente mais forte; flanqueá-lo e como Fabiano, construir para o futuro durante a retirada.

Pareceu-me importante sair do primeiro plano, das confrontações táticas que produzem material para os mass-media, e que na prática tendem a reforçar aqueles que se instalaram nas posições dominantes; circular no mundo universitário tão-somente em função do objetivo principal, que era aprofundar o conhecimento do processo de dominação-dependência no quadro da Guerra Fria – processo que tinha mudado a História do Brasil e marginalizado aqueles que acreditaram no desenvolvimento autônomo do país. Era de evitar, nessa primeira fase fixar-me em cidades como Nova York, Paris ou Londres, centros fabricadores e devoradores de notoriedades. As circunstâncias me haviam transformado em notícia veiculada pela imprensa internacional, o que me assegurava, ao menos por algum tempo, certa proteção. Mas como não perceber que isso era fogo de palha e que logo se colocariam os problemas reais de ter documentação para viver e circular fora de meu país, de dispor de meios materiais de subsistência e condições para realizar o trabalho intelectual que era a razão de ser de meu viver?

Para mim era evidente que, sem uma clara percepção do que estava acontecendo nos Estados Unidos, o próprio sentido das transformações em curso em escala planetária nos escaparia. Era conveniente aproveitar-me da onda de simpatia que se formara em torno de minha pessoa no mundo universitário americano para obter cobertura do Departamento de Estado, indispensável para residir nos Estados Unidos. Eu dispunha de um passaporte diplomático, a rigor sem validade. Bastaria que a embaixada americana no Chile cumprisse as normas ordinárias – solicitasse a carta da embaixada do Brasil explicitando minha missão, que acompanha correntemente qualquer pedido de visto em passaporte diplomático – para eu ser imobilizado e ver impossibilitada minha entrada nos Estados Unidos. Isso me obrigaria a abandonar parte essencial da tarefa que me havia proposto. Graças ao apoio que obtive das universidades e da imprensa americanas, este obstáculo foi superado. Decidi então fixar-me na Universidade de Yale, a meio caminho entre Nova York e Boston, e onde existia um dos principais centros de estudos do desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Tinha consciência de que me afastava do Brasil e da América Latina por muito tempo, e não me escapava que os obstáculos a enfrentar não seriam pequenos.

(Conferir: FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 60 - 68)

sábado, 7 de janeiro de 2012

CELSO FURTADO: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

CELSO FURTADO: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

NEUZA MACHADO


Consciente de que poucos estudiosos-Internautas da História do Brasil – história referente à segunda fase do século XX – tiveram a oportunidade de parar suas vidas corridas para retomar o pensamento de Celso Furtado, permito-me publicar aqui um importante capítulo de seu livro Os Ares do Mundo, editado pela Paz e Terra.

Como estou a publicar capítulos esparsos do referido livro de Celso Furtado, convido aos meus leitores a adquirirem o livro impresso. O mais importante é ler o livro todo (livro editado pela primeira vez em 1991, não s’esqueçam da data), para que possam fazer uma avaliação correta do que aconteceu e acontece hoje no Brasil (desde o início do ano de 2003 até este ano de 2012).

Algumas conhecidas figuras políticas brasileiras e alguns intelectuais daquele momento drástico da Ditadura, inseridos nos textos de Celso Furtado – os muitos que foram exilados para outros países –, ainda continuam em evidência em nosso atual cenário político. Mas será que alguns deles mantiveram-se fiéis aos seus ideais ou será que mudaram de ideia ao retornarem ao Brasil?


UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

Celso Furtado

(Interpretação de Celso Furtado publicada em 1991: FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 52 - 59)

Paralelamente ao debate do ILPES sobre a temática cepalina, que consistia em nova leitura dos textos “clássicos” à luz da experiência recente de perda de dinamismo das principais economias latino-americanas, um grupo mais restrito de brasileiros reunia-se à noite para intercambiar ideias sobre a situação específica do Brasil. Muita gente aparecia ocasionalmente – Paulo Freire, Francisco Oliveira, Estevam Strauss, Jader de Andrade, Cid Carvalho, Darcy Ribeiro, Thiago de Melo, Samuel Wainer, entre outros –, mas o núcleo permanente era reduzido. Participávamos dele Cantoni, Weffort, Cardoso e eu. Concordávamos todos em que o Brasil não fugia ao quadro geral da América Latina, mas não nos escapava que a explicação do que ocorrera entre nós tinha de ser buscada na realidade particular de nosso país. Que estaria acontecendo no Brasil? Esta a questão a ser respondida antes de tudo mais. Estávamos convencidos de que se tratava de um simples assalto ao poder, no estilo de um Pérez Jiménez, na Venezuela, ou de um Fulgencio Batista, em Cuba. Era fácil carregar as tintas a propósito da irresponsabilidade e imaturidade das esquerdas. Chegavam-me muitas cartas de amigos que me interpelavam sobre os fatos. Do professor Maurice Byé, de Paris, de Duddly Seers, que andava então pela África, de Werner Bear, que estava em Yale, de Albert Hirschman, de Princeton. Este último dizia-me em carta: “Esses eventos podem com demasiada facilidade ser interpretados como a prova definitiva de que nunca houve uma chance real de que reformas viessem a ser introduzidas no Brasil, de que os que pensavam de outra forma eram incuravelmente ingênuos. Ora, eu creio que você concorda comigo em que essa interpretação é equivocada, a menos, evidentemente, que incluamos entre as inevitabilidades históricas os erros, as inépcias e crimes da esquerda”. E fazia um apelo para que eu escrevesse alguma coisa, pois muitos eram os perplexos em busca de uma luz.

Aproveitei um convite que viera de Londres, mais concretamente do Royal Institute of International Affairs (Chattam House), no quadro de uma conferência sobre “Obstáculos à mudança na América Latina”, para ordenar minha ideias sobre o que estava ocorrendo no Brasil*. [Nota 3 do livro: 53: Uma versão deste texto foi inserida, sob o título “Análise do caso do Brasil”, em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966]. Não podia desejar um meio mais eficaz de comunicar-me com os amigos do mundo universitário. Comecei chamando a atenção para o fato de que não basta que o desenvolvimento se transforme na aspiração suprema de uma coletividade nacional para que, como objetivo político, venha a prevalecer sobre os interesses de classe e grupos dominantes.

Na tradição liberal, o desenvolvimento era visto como fruto da interação de fatores gerados dentro de uma sociedade, produto daquele instinto para a troca que Adam Smith pretendeu identificar nos homens de todas as épocas. A ideia de uma política ativa de desenvolvimento é fenômeno recente, subproduto dos esforços de estabilização anticíclica. Nas economias capitalistas maduras, a busca da estabilidade – as chamadas políticas de pleno emprego – levou naturalmente à formulação de políticas de desenvolvimento e produziu os instrumentos de regulação macroeconômica.

Esse tipo de política se aplica com êxito ali onde existe um sistema econômico apto a crescer, vale dizer, capaz de gerar seu próprio dinamismo. Não é este o caso da grande maioria dos atuais países subdesenvolvidos, cujo dinamismo depende essencialmente de fatores exógenos. Política de desenvolvimento, neste caso, seria criar as bases de um sistema econômico que, sendo apto a crescer, encerrasse um esforço de reconstrução de estruturas econômicas e sociais.

Fora de situações históricas muito especiais – a Revolução de Meiji, no Japão, a Revolução bolchevique, na Rússia –, dificilmente as classes dirigentes de um país se põem de acordo para transformar suas estruturas, nas quais se funda o seu próprio poder.

A industrialização brasileira, ocorrida a partir dos anos 30, deu-se sem modificações estruturais significativas, independentemente da existência de uma política de desenvolvimento. O ponto de partida foi a crise do sistema primário-exportador, crise que envolveu o Estado, porquanto este vinha intervindo amplamente na comercialização do principal produto de exportação, o café. Assegurando preços altos a esse produto, o governo estimulou a superprodução, agravando a crise gerada no plano internacional pelo crash financeiro de 1929.

Preso na engrenagem que ele mesmo havia criado, o governo brasileiro continuou comprando café e foi levado, por esse meio, no decurso de um decênio, a destruir o correspondente a três vezes o consumo mundial do produto, à época. Ao empenhar-se dessa forma na defesa dos interesses do café, portanto na preservação das estruturas existentes, o governo praticou uma política de defesa do nível da renda monetária. Ora, ao manter-se esse nível em condições de declínio da capacidade para importar, a política de favores ao setor cafeeiro resultou ser, em última instância, uma política de industrialização. Com a rápida desvalorização da moeda, subiam os preços das mercadorias importadas, criando-se condições favoráveis à produção interna. Dessa forma, entre 1929 3 1937, enquanto o volume físico das importações caía 23 por cento, a produção industrial crescia em 50 por cento.

A segunda fase da industrialização brasileira – o imediato pós-guerra – também foi marcada por uma política cambial concebida para a defesa dos interesses do café. Com o objetivo de sustentar os preços do produto – o governo dispunha de grandes estoques, acumulados nos anos de guerra, quando eram baixas as exportações –, praticou-se a sobrevalorização do cruzeiro, o que significava ignorar os interesses dos industriais, em particular porque na época a tarifa brasileira era específica, não acompanhando sequer a elevação dos preços internacionais. As consequências indiretas dessa medida foram as mais inesperadas. As importações aumentaram com rapidez, provocando o esgotamento das reservas de câmbio, o que deu início a um processo de endividamento externo a curto prazo. Preocupado acima de tudo com os preços do café, o governo preferiu à desvalorização cambial uma política de estrito controle das importações, a qual viria a favorecer o setor industrial. A preferência era dada às importações de insumos – a baixos preços –, com o objetivo de dificultar a entrada de produtos finais.

O que convém assinalar é que a industrialização brasileira foi menos o fruto de uma política deliberada e mais o resultado de pressões geradas no sistema produtivo pela conjuntura internacional durante os anos de depressão e de guerra e pela ação do governo na defesa dos interesses do principal produto de exportação.

Contudo, essa industrialização trouxe significativas modificações às estruturas sociais do país. Até 1930, três quartas partes da população brasileira viviam no campo, onde prevalecia a combinação do latifúndio com o minifúndio. Pouco mais de um por cento da população tinha participação efetiva no processo político. As autoridades locais, mesmo quando integradas no governo federal, estavam sob a tutela dos grandes senhores proprietários de terras. O Estado, como organização política nacional, tinha uma escassa significação para a massa da população. O Brasil era uma república oligárquica de base latifundiária.

À margem dessa sociedade essencialmente estável, surgiu como fator de instabilidade uma população urbana ocupada em atividades ligadas ao comércio exterior, ao próprio Estado e a serviços em geral. Essa população, que desfrutava do mais amplo acesso à informação, consumidora em escala maior de bens importados, sente mais diretamente os altos e baixos da política cambial. Sempre que baixam os preços dos produtos exportados nos mercados internacionais, desvaloriza-se a moeda e se transfere para os importadores o essencial da perda de renda real.

Com o declínio relativo das importações a partir de 1930, e a concomitante expansão da atividade industrial e das funções do Estado, intensificou-se o processo de urbanização. Em 1920, viviam nas zonas urbanas 7 milhões de pessoas. Quatro decênios depois, esse número já alcançava 35 milhões, subindo a proporção de 20 para 50 por cento. Como na população urbana é maior a parcela alfabetizada – e apenas os alfabetizados participavam do processo eleitoral –, a atividade política sofreu importante modificação durante esse período, deslocando-se seu centro de gravidade do mundo rural para o urbano.

À diferença do padrão clássico do desenvolvimento capitalista, no Brasil a indústria cresceu (substituindo importações que se faziam inviáveis) sem conflitar com a agricultura. Numa primeira fase, as atividades industriais foram em boa parte fruto da iniciativa de imigrantes de primeira ou segunda geração, que se mantinham isolados da atividade política, reserva de caça da velha oligarquia rural e seus prepostos. A partir da crise de 1929, em razão da queda de rentabilidade da agricultura tradicional de exportação, os investimentos se orientaram de preferência para as atividades manufatureiras. Deu-se assim uma aproximação dos interesses agrícola-exportador e industrial, o que explica a pouca resistência dos cafeicultores às transferências de renda em favor do setor industrial provocadas pela política cambial. Daí que as importantes modificações sociais, que acompanharam a industrialização e a urbanização, não se hajam refletido de forma significativa nas estruturas políticas.

As circunstâncias em que se desenvolveu o movimento operário também contribuíram para a lenta diferenciação das lideranças industriais. A forte contribuição de contingentes europeus na formação inicial da classe operária em São Paulo concorreu para que se estabelecesse um nível de salário real relativamente elevado, o que se faria evidente à medida que o desenvolvimento das comunicações provocasse a unificação do mercado de trabalho. Em condições de oferta totalmente elástica de mão-de-obra e de salários reais relativamente elevados – com respeito aos praticados nas zonas rurais de colonização mais antiga –, a classe operária assumiu precocemente atitudes moderadas, o que facilitou a tutela das organizações sindicais pelo Estado. Na ausência de antagonismos conscientes entre trabalhadores e classe patronal, os empresários industriais se habituaram a um clima social não muito distinto do que prevalecia no setor agrícola.

À falta de uma classe industrial com identidade definida deve-se em boa medida o atraso na modernização do quadro político brasileiro. As constituições políticas representaram poderoso instrumento nas mãos da velha oligarquia de base rural para preservar sua posição como principal força política. O sistema federativo, ao atribuir importantes funções ao Senado, onde os pequenos estados agrícolas localizados nas regiões mais atrasadas têm um peso considerável, coloca o Poder Legislativo sob influência decisiva dos interesses mais retrógrados. Demais, na Câmara dos deputados a representação era proporcional (pela Constituição de 1946) à população de cada estado. Maior o número de analfabetos, maior valor tinha o voto da minoria que participava do sufrágio. Como é nas regiões com mais analfabetos que a velha oligarquia tem mais peso, o sistema eleitoral contribuiu para manter o predomínio oligárquico.

Mas o controle dos centros principais de poder não basta para que a autoridade daí resultante seja aceita como legítima pela maioria da população. É exatamente ao declínio dessa legitimidade que cabe atribuir a baixa de eficácia do poder exercido pela classe que controla o Estado.

As modificações na estrutura social trazidas pela urbanização conduziriam inevitavelmente à predominância do eleitorado urbano. Essa predominância manifestou-se claramente nas eleições majoritárias – para presidente da República e para os cargos de governador nos estados mais urbanizados.

Dessa forma, criaram-se condições para que o Poder Executivo viesse a representar as forças que desafiam as oligarquias tradicionalistas, estas concentradas no Congresso. As tensões entre os dois centros de poder político tenderiam, em consequência, a agravar-se.

Para identificar as forças que vinham desafiando a estrutura tradicional de poder, convém observar mais de perto a natureza do processo de urbanização. Este teve na industrialização apenas um de seus fatores formativos. Não se tratou da urbanização de tipo clássico, caracterizada por forte crescimento do emprego nas manufaturas. No período 1950-1960, a massa trabalhadora agrícola ainda cresceu em 4,5 milhões de pessoas, enquanto as manufaturas criavam apenas 436 mil novos empregos. Contudo, a taxa de crescimento da população urbana foi praticamente o dobro da de aumento da população rural. A urbanização brasileira tem sido principalmente fruto da explosão do terciário, à qual não é estranho o processo de concentração da renda – o excedente rural é principalmente dispendido nas cidades –, de crescimento do setor público e de aumento do salário invisível auferido nas cidades graças aos melhores serviços e às economias de aglomeração.

Enquanto o emprego nas manufaturas cresceu à taxa anual de 3 por cento, a população urbana se expandiu com uma taxa de 6 por cento. As massas que se foram aglomerando nas cidades acomodaram-se em um terciário de baixa produtividade que se prolonga no subemprego e numa cultura da pobreza característica das grandes aglomerações urbanas brasileiras.

Essa população urbana, sem estrutura definida que lhe assegure alguma estabilidade e sem consciência social que não seja o sentimento de exclusão, veio a representar o novo fator decisivo nas lutas políticas brasileiras. O processo de massificação daí resultante está na origem do populismo político que caracterizaria as lutas pelo poder nos decênios recentes.

Essas circunstâncias explicam que o princípio da legitimidade do poder haja tropeçado em dificuldades crescentes. Para legitimar-se, o governo deve operar dentro de normas constitucionais, mas, para corresponder às expectativas da grande maioria que o elegeu pelo voto, o presidente da República deve visar objetivos que conflitam com as posições das forças que dominam o Congresso. Os dois princípios de legitimação da autoridade – o enquadramento nas normas constitucionais e a lealdade no cumprimento do mandato substantivo vindo diretamente da vontade popular – entram em conflito, colocando o presidente em face da disjuntiva de ter que trair o seu mandato ou forçar uma saída não convencional. Explica-se, dizia eu num esforço de síntese, que no correr de um período de dez anos um presidente haja apelado para o suicídio, outro tenha renunciado e um terceiro, sofrido a deposição pela força.

O pacto direto com a massa tem constituído, no período do pós-guerra, condição necessária para alcançar o Poder Executivo no Brasil. O candidato que se limita a apresentar um programa “realista” – sempre interpretado como visando à manutenção do status quo – será facilmente superado por outros audaciosos. Ora, a heterogeneidade da massa dos votantes exige dos líderes populistas compromissos com objetivos nem sempre conciliáveis. Por outro lado, maior a sua audácia, maior a suspeita que desperta que desperta na classe dirigente tradicional. Assim, entre ambiguidade suspeita arma-se a arena política em que se dá o jogo populista.

O conflito entre as massas urbanas, de estruturas fluidas e com líderes populistas, e o velho sistema de poder que controla o Estado permeia todo o processo político do Brasil atual. Os líderes populistas falam de modernizar o país através de “reformas de base”, “modificações estruturais”. A classe dominante tradicional utiliza habilmente a pressão populista como espantalho para submeter a seu controle os novos grupos de interesses patrimoniais surgidos com a industrialização e ocasionalmente amedrontar os seguimentos sociais médios, principais beneficiários da industrialização.

A existência de um conflito que põe em xeque o próprio funcionamento das instituições em que se apóia o poder político criou condições propícias à arbitragem militar, o que explica a facilidade com que esta se efetivou. Sem eliminar as causas do conflito, essa arbitragem promove meios para a superação do impasse. Ela tanto pode vir para consolidar a estrutura tradicional de poder, submetendo as massas a um processo de adormecimento, como para forçar mudanças nas estruturas tradicionais. Esta segunda hipótese abre espaço para um populismo militar, o qual assusta, mais que qualquer outra coisa, as classes dirigentes tradicionais e conduz necessariamente a outra forma de instabilidade. O mais provável, entretanto, é que a arbitragem militar seja apresentada, mediante manipulação da opinião pública, como encarnação do interesse nacional, retorno à estabilidade e preservação da “ordem”.

Cabe indagar: um sistema de poder que expressa as aspirações das classes dirigentes tradicionais terá meios de formular e executar uma política de desenvolvimento num país em que desenvolvimento significa necessariamente mudanças sociais? Se a resposta é negativa, não estaremos caminhando para um novo impasse, agravado agora por maior frustração das massas excluídas? A inevitável nova ruptura que se prepara não se tornará ainda mais severa com o prolongamento do novo impasse? A experiência política brasileira futura deverá esclarecer essas questões, dizia eu, concluindo essa primeira análise do processo histórico que se abrira com o golpe militar de 1964.