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sábado, 15 de outubro de 2011

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA "ABSOLUTO"

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA “ABSOLUTO”

NEUZA MACHADO
 


Esta análise do poema “Absoluto” faz parte do livro Criação Poética: Tema e Reflexão: Sobre a obra poética de Gilberto Mendonça Teles.


MACHADO, Neuza. Criação Poética: Tema e Reflexão. Rio de Janeiro: NMACHADO, 2005.


(Apreciem o esquema do poema "Absoluto" no final do capítulo)


ABSOLUTO


Gilberto Mendonça Teles


O rio deste quarto não tem margens,
mas serve de limites. Não tem águas,
mas lava nossa sede. Não tem foz,
mas chega a seu destino antes de nós.


O rio deste quarto tem a graça
de correr para dentro: é pura mágoa,
fina sombra no leito sem lençol
modelando o remorso deste anzol.


O rio deste quarto só tem peixes
encantados, que nadam nas paredes
e atravessam meu sonho na mudez
das formas sem reflexo e nitidez.


O rio deste quarto não tem fundo
nem corre à superfície. Não tem dono
nem reparte seus bens. Mas pode mais
que a cicatriz no peito dos rivais.


O rio deste quarto tem meandros
e melindres. Seu nome vai passando
absoluto e plural, aluvião,
remanso de silêncio e solidão.


(TELES, Gilberto Mendonça. Hora aberta. (Poemas reunidos). 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986 (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).



O Absoluto como última fronteira poética:


No poema “Absoluto” (Hora Aberta, 1986), Gilberto Mendonça Teles procura significar este espaço recôndito e misterioso, onde se encontram latentes o Amor, a Poesia, os sentimentos indizíveis acessíveis a uns raríssimos privilegiados. O poeta faz parte de um pequeno grupo de iniciados, capacitados para vislumbrarem além de suas fronteiras. No poema “A Pedra”, já informava de sua condição meio oscilante, habitante de dois mundos ao mesmo tempo, e, assim, um Ser conflituado. Ao longo do poema (o primeiro aqui analisado), fez conhecer a sua condição de lapidador de um material muito precioso. Em “&Cone de Sombras” (o segundo poema aqui analisado) procurou significar o processo deste trabalho, o qual chamou de manifestação do amor; esta manifestação do amor significando o próprio texto poético, ou seja, no poema assinalado o texto poético é caracterizado como CONE, junção de ÍCONE e CONE, ou uma simples figuração do descontínuo. Penso fenomenologicamente que descontínuo caracteriza, por sua vez, a ideia de ABSOLUTO. Posteriormente (no terceiro poema aqui analisado), Gilberto fez conhecer também, por intermédio do sujeito de sua enunciação poética, as dificuldades para se decodificar o CONE, e mesmo o ÍCONE que subjaz no CONE. Para tal empresa, alertou para a necessidade de se possuir uma aguda PERCEPÇÃO. Os empecilhos, para tal empreendimento, são inúmeros; há “cercas ideológicas" impedindo o desbloqueio da visão. Só os poetas possuem tal privilégio (de desbloqueio da visão) e ele é um deles. Enquanto criador de poesia, enquanto plenipotenciário do fazer poético, ele já passou por todas as etapas e agora, neste poema em especial, se encontra ilhado, em seu quarto, de onde vislumbra tudo, o mundo conceitual e o plano das ideias ainda não formalizadas, por meio de uma misteriosa tela, panorâmica e transcendental. Agora, o poeta se encontra confortavelmente instalado em um espaço sui generis, onde se desconhecem as exigências da realidade concreta. Não é um mundo irreal, mas também não é o mundo real. Este espaço singular de Gilberto Mendonça Teles é formado por uma IRREALIDADE OBJETIVA, consequentemente não é um espaço não-palpável. O próprio sujeito da enunciação poética, submetido à consciência pura do Poeta (vide Gaston Bachelard), afirma que, em um quarto hipotético, há um rio, e que este rio não tem margens, mas serve de limites. O rio não tem água, não tem foz, não tem fundo, não corre à superfície, não tem dono, nem reparte seus bens; vários sememas que autorizam-me a pensar em um “rio negativo” (referente), levando-me a um sema isotópico que caracterizo como IRREALIDADE OBJETIVA.


Outra característica marcante desse "rio", rio que se encontra em um quarto, é que, mesmo possuindo uma IRREALIDADE OBJETIVA estranhíssima, esse mesmo "rio" possui mais algumas características também muito singulares, mas já classificadas dentro de um outro referente. Apesar de ser apenas um, esse "rio" é também positivo, assim, o referente “rio” é bipartido em positivo e negativo. Esse "rio" especialíssimo possui um “sema isotópico” que classifico como IRREALIDADE OBJETIVA, mas possui também um outro “sema” que qualifico como REALIDADE SUBJETIVA. Como detectar a realidade subjetiva desse “rio” gilbertiano? Esse “rio” diferenciado, apesar de não possuir margens, não ter águas, não ter foz, tem a graça de correr para dentro, possui sentimentos, porque é pura mágoa; o “rio” sente remorsos, porque personifica os sentimentos interiores daquele que recebeu a incumbência de revelar os segredos do “indizível”. Esse “rio” insólito, apesar de não ter águas, tem peixes encantados; mesmo aparentemente frágil, é um “rio” que pode mais que a cicatriz no peito dos rivais. Esse “rio” gilbertiano nos faz lembrar do "&Cone de Sombras", essência singularíssima do poético, porque este “rio” incomum possui meandros e melindres.


Esse distinguido “rio”, que se encontra situado em um quarto, mesmo sem águas, mata a nossa sede, mesmo sem foz, chega a seu destino antes de nós. É um “rio” que expressa a realidade de nossos sonhos, mais ainda, expressa a realidade do sonho do Poeta, porque, logo depois, ele deixa de lado o pronome nós, enquanto ideia de coletividade, usado no início, e revela a sua condição de único dono desse espaço transcendental.


O rio deste quarto só tem peixes
encantados, que nadam nas paredes
e atravessam meu sonho na mudez
das formas sem reflexo e nitidez.


Esse “rio” do poeta goiano não significa um rio qualquer, não expressa um referente ligado à realidade tangível. Está localizado em seu imaginário particular, lugar onde se concentram cotas de lenda em conta-gota, em que se fundem a realidade e os "sonhos retos do amanhecer" (Bachelard). A IRREALIDADE OBJETIVA e a REALIDADE SUBJETIVA – unidas – formam um só plano semântico. As duas realidades servem de base para estruturar um “sema isotópico maior”, aqui denominado como SUPRA-REALIDADE. O Absoluto vigora nesse espaço suprarreal. O Absoluto é o ÍCONE (POSITIVO) em toda a sua grandeza, é a própria essência do Amor, da Poesia, da Musa, seja qualquer denominação que possa revelá-lo na parte visível do pergaminho, no momento da intuição da Poesia.


Esquema analítico do poema ABSOLUTO



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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA "PERCEPÇÃO"

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA “PERCEPÇÃO"

NEUZA MACHADO


Esta análise do poema “Percepção” faz parte do livro Criação Poética: Tema e Reflexão: Sobre a obra poética de Gilberto Mendonça Teles.

MACHADO, Neuza. Criação Poética: Tema e Reflexão. Rio de Janeiro: NMACHADO, 2005.

(Apreciem os esquemas do poema "Percepção" no final do capítulo)


PERCEPÇÃO

Gilberto Mendonça Teles


O mundo te rodeia de cercas e desejos,
te comprime no refúgio de teu quarto
e te restringe à lâmina das coisas
no seu fino acontecer.

Todavia, o amor é para toda a vida,
é para sempre e um dia e mais talvez:
o amor te prende às palavras e te liberta
na invenção de alguns códigos e silêncios.

É possível que a tua cota de realidade
seja agora por demais excessiva
e apenas te deixe perceber os possíveis
de outros planos e subversões.

Vê como as cortinas disfarçam o teu olhar,
como as ruas se enrodilham aos teus pés
e como algumas veredas vão desaparecendo
nos teus desertos e viagens.

Que seria de ti sem os teus espelhos?
sem a jarra-de-flores que guarnece
o espaço dessa mesa de pernas para o ar,
com velhas catacreses da gaveta?

É para ti que as águas vão polindo
os sentidos desse único sentido
ainda vulnerável, mas perdido na cena,
no espetáculo obsceno de ti mesmo.

TELES, Gilberto Mendonça. Hora Aberta. Rio de Janeiro: José Olympio/Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986 (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).


Nos versos do poema “Percepção”, do livro Plural de nuvens, o sujeito da enunciação assinala o fato de que o ser humano vive, no mundo, rodeado de "cercas" e "desejos". Em uma análise cientificista, como é o caso da Semiologia do Texto Literário, não há como desenvolver um estudo que explique realmente as significações dos referentes “cercas” e “desejos” que compõem a idéia de mundo vital. A análise exclusivamente cientificista privilegia apenas um estudo objetivo das camadas visíveis do texto (por meio de esquemas e dissecações), não se incomodando em absoluto com a camada plurissignificativa reveladora das mensagens ocultas, camadas invisíveis que só serão apreendidas por intermédio de uma interpretação extra-texto.

Neste caso, resguardada pela interpretação fenomenológica, procuro descobrir os diversos sentidos dos referentes em questão. E eis que percebo o Mundo, graças a sensibilidade do Poeta goiano, como um lugar opressivo repleto de cercas e desejos. Detenho-me para pensar nos inúmeros significados, denotativos e conotativos, das palavras "cercas" e "desejos", já ostentando, ambas, um certo grau de multiplicidade, graças a pluralização que as engrandece. "Cercas" e "desejos" fazem parte do cotidiano do homem. Cercas ideológicas, diretrizes de vida que impedem o ser humano de direcionar seu próprio destino. Desejos que não se realizam, porque há forças poderosas contrárias à realização. "Cercas e desejos" submetendo o homem a um mundo de aparências, desviando-o de seus anseios mais puros. E eis exatamente o que o Poeta quer revelar: preso numa armadilha de conceitos, o ser humano não consegue vislumbrar o Amor, o Absoluto e a essência da Poesia, perceptíveis apenas para uns poucos eleitos.

O poema (mesmo se adequando ao Gênero Lírico) é uma crítica; é a certeza de que há a necessidade de um eu consciente para fazer com que o outro desperte. Há a necessidade de despertar a atenção daqueles que estão confinados em um espaço fechado, espaço onde imperam normas ideológicas cegas e intransigentes. E ele aponta a solução: há que se transcender os limites substanciais e buscar o que se encontra por trás da cortina. Atrás da cortina, ou seja, no lado oculto do poema está o único sentido, ainda vulnerável, ainda na sombra, mas passível de ser decodificado, de ser visível.

Seguindo as normas da Semiologia de Segunda Geração, o poema pode ser dividido em três movimentos. A primeira estrofe de quatro versos e os quatro versos iniciais da segunda estrofe de oito versos tornam-se visíveis como assinaladores do primeiro movimento. O segundo movimento é formado pelos quatro versos finais da segunda estrofe de oito versos. O terceiro movimento (e último) encontra-se representado nos versos finais desde “vê como as cortinas disfarçam o teu olhar”. Os referentes destes versos serão caracterizados aqui como MUNDO IDEOLÓGICO, representando o ESPAÇO CONCEITUAL, dimensão esta que, por sua vez, será nesta análise reconhecida como sema isotópico. Um segundo referente constrói a realidade expressa de um tu hipotético ilhado em seu quarto. O sema isotópico que dá sentido a esta realidade objetiva será representado como o ESPAÇO INDIVIDUAL desse tu, "rodeado de cercas e desejos".

O sujeito da enunciação poético-lírica afirma que atrás da cortina está o único sentido passível de ser decodificado. A cortina simboliza os conceitos, os desejos, os sentidos, tudo o que está à volta do ser humano e o comprime e o impede de visualizar o Amor. E a palavra Amor, aqui, terá de ser entendida como um referente realçador da própria Poesia.

Há no poema um significativo aviso: “Vê como as cortinas disfarçam o teu olhar, / como as ruas se enrodilham aos teus pés / e como algumas veredas vão desaparecendo / nos teus desertos e viagens”. Essas ruas ainda não se encontram ao alcance da terceira visão que as tornará amplas e retas. As ruas se embaraçam nos pés, pois são caminhos já conhecidos, cristalizados, conceituados; não há a necessidade de uma percepção que ultrapasse os obstáculos e que permita visualizar o não-conhecido. Numa situação nova, estamos presos a velhos conceitos que nos impedem de raciocinar adequadamente e ultrapassar novos limites e novas ruas; novos caminhos, novas veredas desaparecem porque estamos presos aos costumes, às cercas e desejos; estamos ligados a um mundo aparentemente organizado, que nos traça os caminhos, que nos limita. Limitados a conceitos pré-estabelecidos, excessivamente repletos dos dogmas que imperam à nossa volta, adquirimos posicionamentos superficiais, insuficientes para nos fazer perceber que há uma supra-realidade que vigora no tempo e no espaço, que pode ser captada por vários ângulos, mas que, em virtude de sua grandeza, jamais poderá ser abarcada em sua totalidade. Repletos de velhos conceitos superficiais, os quais nos impedem de abrir novos caminhos, nosso interior torna-se um deserto; há o medo de uma incursão/excursão ao novíssimo plano da liberdade substancial, medo este que nos impede de desbravar o não-conhecido.

“Que seria de ti sem os teus espelhos?”, indaga-nos o Poeta.

Subentende-se, neste verso, uma crítica aos leitores lineares, uma chamada de plena atenção extratexto (jamais realçarei a suposição de um tom irônico). Que seria de nós sem as nossas máscaras? Que seria de nós sem as aparências, sem as coisas palpáveis que nos fazem sentir falsamente seguros? Que seria de nós sem a certeza de que há velhos dogmas para nos direcionar nesse mundo atribulado de início de milênio; sem as cercas conceituais; sem as velhas catacreses da gaveta; sem os nossos limites?

Uma percepção desbloqueada possibilita-nos uma maior amplitude de visão, faz-nos descobrir novas veredas, novos cursos de água que polirão os sentidos momentaneamente adormecidos pelos pré-conceitos. Uma percepção desbloqueada ajuda-nos a alcançar outros planos, outras versões que subjazem nos domínios do absoluto. Enquanto passíveis de serem detectados, estes planos são vulneráveis. Ainda não estão definidos, mas serão conceituados a posteriori. Por enquanto, encontram-se perdidos na cena, ou seja, são sombras que atuam por detrás das cortinas. De certa forma, esses planos, esses sentidos, retratam as várias etapas de transição por que passam as nossas tentativas de desbloqueio; representam o conflito entre os conceitos e o sentido (único sentido) de absoluto que habitam em nosso interior. Ao desdobrarmos novos sentidos, vamos retirando, uma por uma, as peças do vestuário que recobre a nossa nudez. Isto equivale ao despojamento dos velhos conceitos, e o desnudamento é chocante, obsceno. O obsceno não é o ato de desnudar-se completamente, é o espaço de transição entre o “todo coberto” (total ignorância) e o “todo nu” (lucidez permanente). Apenas não alcançamos esta lucidez permanente porque sempre criaremos novas roupagens, novos conceitos, revestindo assim nossa insegurança. Para o Poeta, vale mais o espetáculo obsceno do desnudar-se. O que importa é “caminhar, colher florzinhas, espiar os ditos e os não ditos”, alcançar o mais recôndito de nosso interior, ver a nossa verdade, mesmo que isto seja um ato obsceno. Afinal, critica o poeta, alertando-nos quanto à nossa insegurança existencial: Que seria de nós sem as vestes cotidianas?

“Todavia, o amor é para toda a vida,
é para sempre e um dia e mais talvez:”

O Amor, principalmente para o Poeta do final do segundo milênio, é a plenitude de tudo, é a própria essência da vida. O Amor pode ser a Poesia, o próprio Amor e suas múltiplas manifestações; pode ser a Idéia, quando esta significar visão ampla; pode ser o Infinito, o Abstrato que não se conceitua, o Atemporal; pode ser o Absoluto, tema tão bem explorado por Gilberto Mendonça Teles em outro poema (que também será analisado aqui neste blog). “O amor te prende às palavras e te liberta”, o amor e seu caráter ambíguo, possibilitando diversas interpretações; o Amor que é senhor absoluto do espaço da liberdade. AMOR, POESIA, MUSA são palavras sinônimas no dicionário de Gilberto Mendonça Teles. Seu dever de honra é revelá-las num ato de amor.







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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

CECÍLIA MEIRELES E SEU "ROMANCEIRO" PÓS-MODERNO: ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS

CECÍLIA MEIRELES E SEU “ROMANCEIRO” PÓS-MODERNO: ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS

NEUZA MACHADO


Nossos olhos críticos fazem, agora, o julgamento dos assassinos dos inconfidentes, cumprindo o vaticínio da poetisa “e, sobre vós, de longe, abrem grandes olhos pensativos”. Para esse julgamento, para abrirmos nossos “grandes olhos pensativos”, não nos bastará conhecer a versão oficial da história daqueles anos do final do século XVIII, será necessário interagirmos reflexivamente com o contexto que impulsionou as ações dos personagens históricos, literariamente revividos pela força anímica das imagens poéticas. Lendo o Romanceiro da Inconfidência, mas conscientemente respaldados por nosso imaginário-em-aberto, somos transportados àquele instante, para ajuizadamente fazermos nossa própria avaliação transtemporal.


E a reflexão histórico-poética projetada pelo Romanceiro de Cecília Meireles servirá para aprofundar o entendimento sobre o que ocorre hoje no Brasil, no que diz respeito à ascensão sócio-econômica da maioria de sua população anteriormente considerada de baixíssimo nível social, uma população que até há pouco tempo se encontrava em situação de extrema pobreza. Infelizmente, a idéia de repartir o pão fraternalmente, neste nosso país tão vasto e tão repleto de riquezas naturais, é algo que gera descontentamento nas classes ditas abastadas. As riquezas de nosso solo ainda são disputadas pela minoria mais endinheirada de nossa sociedade. De qualquer maneira, para a minha satisfação e gáudio, essa minoria pode até ser mais rica do que a de outrora, mas, graças aos Céus!, não é mais tão poderosa como antes. O poder inquestionável do passado existia porque o povo não conhecia a sua própria força para mudar os rumos da história. A atual perspectiva sócio-econômica instaurada pelo Presidente Metalúrgico possibilitou uma nova identidade para o povo, uma identidade coesa e consciente, capaz de agir para o bem da COMUM-UNIDADE.


Aos internautas conscientes, peço que leiam o ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS, da autoria de nossa grande poetisa Cecília Meireles, para que julguem com seus próprios meios interpretativos a sanha dos assassinos dos inconfidentes, e para que façam uma comparação criteriosa entre o momento passado e o momento presente.



ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS


Cecília Meireles


Ó grandes oportunistas,
sobre o papel debruçados,
que calculais mundo e vida
em contos, doblas, cruzados,
que traçais vastas rubricas
e sinais entrelaçados,
com altas penas esguias
embebidas em pecados!


Ó personagens solenes
que arrastais os apelidos
como pavões auriverdes
seus rutilantes vestidos,
– todo esse poder que tendes
confunde os vossos sentidos:
a glória, que amais, é desses
que por vós são perseguidos.


Levantai-vos dessas mesas,
saí de vossas molduras,
vede que masmorras negras,
que fortalezas seguras,
que duro peso de algemas,
que profundas sepulturas
nascidas de vossas penas,
de vossas assinaturas.


Considerai no mistério
dos humanos desatinos,
e no polo sempre incerto
dos homens e dos destinos!
Por sentenças, por decretos,
pareceríeis divinos:
e hoje sois, no tempo eterno,
como ilustres assassinos.


Ó soberbos titulares,
tão desdenhosos e altivos!
Por fictícia austeridade,
vãs razões, falsos motivos,
inutilmente matastes:
– vossos mortos são mais vivos;
e, sobre vós, de longe, abrem
grandes olhos pensativos.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA "&CONE DE SOMBRAS"

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA “&CONE DE SOMBRAS”

NEUZA MACHADO



Esta análise do poema "&Cone de Sombras" faz parte do livro de Neuza Machado: Criação Poética: Tema e Reflexão - Sobre a obra poética de Gilberto Mendonça Teles.

&Cone de Sombras

Gilberto Mendonça Teles

Um ícone de sombras e penumbras
está a teu alcance algum momento
como um sinal, uma dicção, alguma
forma que ainda vai acontecendo.

Um cone apenas restará: o espaço
reticente do amor com sua força
silensual: seus tropos, seus acasos,
sua quota de lenda em conta-gota.

Também a conexão de alguns requintes,
de sugestão na meia-luz contrária:
alguns raros meandros e melindres,
a leitura do verso da medalha.

Se um eclipse anular teu privilégio
de percepção da imagem retorcida,
é que no fundo a taxa de mistério
continua por dentro, na saliva,

no resmungo da língua e na viagem
que em si mesma se faz, mas sem caminho,
sem margens de sentido – pura praxe,
simples figuração do descontínuo.


(TELES, Gilberto Mendonça. Hora Aberta. (Poemas reunidos). 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986 (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).


No poema anterior de Gilberto Mendonça Teles, “A Pedra" (já analisado páginas atrás), o sujeito da enunciação, utilizando-se de jogos de palavras, usando um só referente pluri-ambíguo, demonstra o esforço do lapidador para significar o indizível e, posteriormente, o trabalho que terá de ser realizado se um possível alguém resolver decodificar o já manifestado, mas que continua ainda sob uma estrutura hermética. Em “A Pedra”, o sujeito da enunciação não está indicando caminhos para uma possível decodificação da escrita poética, apenas constata as dificuldades iniciais do obreiro, sua condição de intermediário entre dois espaços – intuição (extratexto) e significação (texto) – e revela algumas formas de como se penetrar na trama plurissignificativa própria da poesia.

Em “&Cone de Sombras”, o sujeito da enunciação poética está camuflado, esconde-se atrás de um pressuposto orientador de caminhos. Isto se dá em virtude de a mensagem se estruturar no já textualizado. O trabalho de lapidação da pedra não aparece (as fases pré-textuais não estão visíveis).

Um ícone de sombras e penumbras
está a teu alcance algum momento
como um sinal, uma dicção, alguma
forma que ainda vai acontecendo.

Um cone apenas restará: o espaço
reticente do amor com sua força
silensual: seus tropos, seus acasos,
sua quota de lenda em conta-gota.

A exemplo do outro poema analisado ("A Pedra"), e seguindo a orientação da semiologia do texto poético, este poema "&Cone de Sombras" também foi dividido em movimentos, para que seus campos semânticos se tornassem visíveis. De acordo com o ponto de vista da Semiologia Literária de Segunda Geração (ponto de vista esse recuperado teoricamente dos livros de reconhecidos Semiólogos da segunda metade do século XX), as duas estrofes acima representam o primeiro movimento, primeiro passo para o esclarecimento da linguagem poética (Gênero Lírico), permanentemente plurissignificativa e transgressora. O segundo movimento do poema se situa na terceira estrofe. Detecta-se um terceiro movimento, que começa na quarta estrofe e termina na expressão "sem margens de sentido", situada no terceiro verso da quinta estrofe. O sinal de travessão, contido neste terceiro verso da quinta estrofe, oferece margens de sentido que remetem a um quarto movimento (sem dúvida, uma síntese da mensagem contida neste texto poético em especial).

Para esclarecer melhor, reporto-me ao primeiro movimento: Em princípio, sei apenas que "um ícone de sombras e penumbras" está ao alcance de um tu hipotético. Segundo Greimas, nenhum texto poético autoriza o leitor-analista a ressaltar um destinatário específico em comunicação com o remetente. Por tal motivo, abandono temporariamente minhas prováveis fenomenológicas interpretações extratexto e passo à decodificação do próprio texto poético enquanto camada visível. Assim, posicionando-me submetida às regras da semiologia – regras altamente cientificistas – encontro um primeiro referente: ÍCONE; este referente assinalado conforma o indizível, o não-dito ou qualquer outra denominação que se queira dar ao plano amorfo do Silêncio, enquanto espaço ainda não conceituado. Resguardada pelo referente ÍCONE, posso dizer que "uma imagem de sombras e penumbras" – uma parte do mistério passível de ser decodificado – encontra-se à disposição de quem quiser desenvolver um trabalho de pesquisa e empreender a busca para descobrir o que se oculta no espaço reticente do amor com sua força silensual. É suficiente, de acordo com o sujeito da enunciação poética, que este alguém saiba apreender o momento certo, observar os sinais, decodificar as mínimas unidades significativas, transcender a imagem em concretude até a desvelação do que foi, antes, manifestado hermeticamente.

"Um cone apenas restará". Neste primeiro verso da segunda estrofe, apreendo um outro referente, CONE, sugerindo-me a imagem do já manifestado, reunindo, ao mesmo tempo, todo o processo da manifestação. É o referente CONE o somatório de duas forças que se completam e se repelem, ou seja, além de sua própria força, enquanto espaço visível, instala-se nele (CONE), também, o mistério do ÍCONE, espaço invisível repleto de "sombras e penumbras". ÍCONE e CONE: sombra e luz se unem explicitamente para significar alguns planos, passíveis de decodificação, inseridos no indizível espaço do Mistério Eterno. O CONE poderá ser visto, também, como um recurso de imagem para explicar o processo de filtragem de racionalização do Mundo do Silêncio.

Um cone apenas restará: o espaço
reticente do amor com sua força
silensual: seus tropos, seus acasos,
sua quota de lenda em conta-gota.

O referente CONE (se me ajusto cientificamente ao ponto de vista da semiologia literária) simboliza o próprio objeto poético, enquanto expressão da Linguagem; simboliza o entrelaçamento das diversas camadas que o compõem (visíveis e invisíveis); simboliza a própria manifestação do Amor (= Poesia-Silêncio ou Linguagem primordial) com sua "força silensual" (silenciosa e sensual?). Este espaço reticente do CONE qualifica o amor; é reticente porque necessita sofrer atos de preenchimentos, complementações, unificações; é reticente porque necessita de uma percepção transcendental que saiba captar as sugestões que se acham reveladas nas entrelinhas do espaço desvelado. Assim, CONE como espaço destinado ao Amor (CONE = invólucro da linguagem enquanto ato de amor), porque só o Amor preenche este vazio, esta carência; só o Amor, com sua "força silensual", propiciará uma futura e correta revelação ao entendimento do leitor.

Como detectar essa revelação?

O CONE, como já foi dito anteriormente, sintetiza os dois campos semânticos do texto poético: o velado e o desvelado, campos semânticos caracterizados esquematicamente como semas isotópicos, de acordo com a orientação dos postulados greimasianos. Deste modo, para facilitar minha posterior interpretação, depois da análise semiológica rigorosamente cientificista, e, assim, propiciar futuros estudos intertextuais, dividi o plano do CONE em dois sub-segmentos (não detectados no desenho esquemático – ver desenho esquemático no final do capítulo) e os classifiquei como CONE NEGATIVO, refletor do ÍCONE NEGATIVO, espaço invisível que se esconde no CONE POSITIVO, símbolo do espaço visível do texto poético.

Antes de continuar com a minha análise semiológica, quero esclarecer que os símbolos matemáticos positivo (+) e negativo (-), usados nesta pesquisa, não se prendem a nenhum raciocínio teórico já reconhecido e que tivesse se utilizado também de símbolos semelhantes, dentro de outros conceitos interpretativos. Apenas, quero esclarecer, reconheço o ÍCONE NEGATIVO, inserido no texto de Gilberto M. Teles, como o negativo de uma face do ÍCONE POSITIVO, realidade absoluta, incapaz de ser decodificada em sua totalidade. O CONE NEGATIVO e o CONE POSITIVO refletem, neste poema de Gilberto Mendonça, o ato de revelação da fotografia, uma vez que, sob a aparência da fotografia, sempre se oculta o negativo. O CONE POSITIVO, por meio deste raciocínio, revela a face recopiada do ÍCONE POSITIVO. Reafirmando tudo o que já foi dito anteriormente, o CONE se mostra como referente nuclear, em que forças antagônicas e, ao mesmo tempo, harmônicas se unem, propiciando uma luminosidade poético-criativa que poucos conseguem vislumbrar: "Um cone apenas restará: (...) seus tropos, seus acasos, sua quota de lenda em conta-gota".

Depois da manifestação do Amor – manifestação da Poesia-Linguagem como ato de amor – torna-se mais fácil perceber o CONE POSITIVO – camada visível – e, a partir dele, ultrapassar as fronteiras textuais até atingir o que foi apenas sugerido e se encontra invisível. Este é o plano do poema em que se vislumbra a criação poética de Gilberto Mendonça em toda a sua grandeza. Neste plano mimético situa-se "o amor com sua força silensual". Para decodificá-lo, recorri a indícios significativos que fazem parte do imaginário-em-aberto do ser humano, qualquer que seja o seu grau de conhecimento: científico, filosófico, religioso ou artístico. Neste caso, a interpretação extratexto se faz necessária, e todos os conhecimentos se unem em benefício da apreensão correta da mensagem poética. É importante realçar que a semiologia do texto poético se vale de uma análise fechada, cientificista, determinante de um olhar objetivo do texto visível. E aqui se instaura o meu próprio impasse teórico-crítico-reflexivo. A análise é altamente importante para a decodificação do texto literário, mas o estudioso da literatura necessita de uma maior abrangência teórico-crítica. Não considero uma atitude inviável a união pacífica dos dois grandes grupos críticos que comandaram os estudos da Literatura no final do anterior Segundo Milênio e que ainda continuam comandando nestes anos iniciais do Terceiro Milênio.

Resguardada pela minha própria compreensão do texto (por intermédio de orientação fenomenológica), depois da análise semiológica, passo agora a observar as palavras e expressões do poema de Gilberto Mendonça por um novo prisma, certa de que há uma pluralidade de sentidos subjacentes nas mesmas. Inicialmente, como já foi exposto na análise semiológica, procurei compreender as gradações imagísticas (imagens fragmentadas, imagens menores, imagens maiores, imagens complementares), todos "os tropos somados aos acasos" (combinações, idéias inesperadas, conexões, intuições). "Acasos" também simbolizando os vários caminhos que levam à manifestação do amor: caminhos que se encontram, que se combinam, que se multiplicam, que se prolongam, que se perpetuam, etc. Alargando meu campo de percepção, mentalizo no espaço do CONE, além dos "tropos e acasos", "uma quota de lenda em conta-gotas", ou seja, as gotas de lenda que compõem o riquíssimo imaginário do ser humano. O sujeito da enunciação, neste poema especificamente, deixa a cargo do leitor o ato de repensar as lendas, porque no CONE, plano semântico nuclear de seu poema, há apenas sugestões. As lendas fazem parte do inconsciente coletivo; todos têm conhecimento delas, em maior ou menor grau; por isto, na intuição do Poeta, elas vêm em conta-gotas. O pressuposto analista necessitará de sua própria compreensão fenomenológica, de todos os conhecimentos adquiridos por meio de indispensáveis e constantes leituras para decodificar/interpretar o CONE.

Reportando-me novamente à Semiologia de Segunda Geração, melhor dizendo, ao esquema do primeiro movimento, detecto ÍCONE e CONE como referentes que propiciam a manifestação da linguagem e alguns sememas que definem cada referente. Os sememas que constroem o referente ÍCONE, neste primeiro movimento, são as palavras e expressões: sombras, penumbras, um sinal, uma dicção, todas simbolizando uma única idéia, uma espécie de síntese do próprio referente: "forma que ainda vai acontecendo", mistério passível de ser revelado, mas, por enquanto, velado. "Velado": sema nuclear do referente ÍCONE.

Os sememas que compõem o referente CONE são as expressões: seus tropos, seus acasos, sua quota de lenda em conta-gotas, também exprimindo, numa única idéia-síntese, "o espaço reticente do amor com sua força silensual". No âmbito do CONE, o mistério já foi desvelado. "Desvelado" é o sema nuclear do referente CONE.

Sintetizando este primeiro movimento, posso dizer que existem dois espaços semânticos compondo a manifestação do amor, ou seja, a manifestação da Poesia, ou do próprio Amor em todas as suas gradações possíveis, ou, até mesmo, da essência da Vida, ou, quem sabe?, do Infinito, do Abstrato, do Atemporal. Estes dois espaços, o velado e o desvelado, compõem a Vida, compõem a obra de um Poeta. Estes dois espaços, interligados, estão à disposição de quem quiser penetrar no texto e tentar decodificar, para posteriormente compreender, o que se encontra VELADO, mas latente nas entrelinhas.

No segundo movimento, o sujeito da enunciação poética esclarece muito mais. Além do velado e do desvelado, há mais um dado importante compondo o todo do texto poético: não basta apenas desvelar o que antes estava velado, há a necessidade de re-velar, trazer à luz as ideias que estavam veladas e que poderiam continuar ocultas depois da desvelação. Revelar é muito mais do que simplesmente desvelar, revelar é mostrar os caminhos difíceis que o poeta necessitou percorrer para que, finalmente, pudesse manifestar o Amor em toda a sua plenitude. É ele que afirma: Há "um ícone de sombras e penumbras", há um cone que é o "espaço reticente do amor", mas há uma CONEXÃO, unindo ÍCONE e CONE. CONEXÃO, neste segundo movimento, traduz mais um referente. Os sememas que compõem este novo referente são: alguns requintes, sugestão na meia-luz contrária. O sema isotópico será, naturalmente, o termo RE-VELADO.

Esta CONEXÃO, portanto, referenciando a união, a junção, o fortalecimento pelas bases; informando semiologicamente a força que atuará unindo os campos semânticos. O Poeta, no início, antes de passar a palavra ao sujeito da enunciação, seu alter ego no Espaço da Poesia, possui apenas uma forte intuição. Ao começar sua obra, parte de um espaço velado e começa a desenvolver o processo de manifestação do que foi intuído (ele afirma que é a manifestação do amor) até chegar ao desvelado. Há um estímulo de imagens ao acaso (o que na fenomenologia bachelardiana é reconhecido como “repouso ativado”) e o Poeta não tem controle nesses estímulos, nessas combinações, apenas procura dar forma a esta intuição. Assim, ele se vale de alguns requintes, de algumas sugestões na meia-luz contrária, para que haja, posteriormente, a RE-VELAÇÃO. Para que ocorra uma autêntica revelação, procura controlar seus impulsos poéticos, valendo-se criativamente de seus conhecimentos. Não que este controle seja uma condição sine qua non para se revelar o Amor. Ele mesmo diz: "Também a conexão de alguns requintes" (...). Também poderá ser condição, ou sugestão. Poderá oferecer a idéia de acréscimo, de continuidade, poderá ser, ou não ser, supérfluo. Na verdade, não é e não será uma condição essencial.

Observe-se este semema: "sugestão na meia-luz contrária". As palavras que compõem o semema transmitem a ideia de opacidade. Por meio do confronto, da oposição, do questionamento, dos obstáculos enxerga-se mais, chega-se ao que se quer sugerir. E eis o ÍCONE camuflando alguns "raros meandros e melindres"; alguns raros caminhos de uma região afastada, isolada, inacessível; alguns raros caminhos do Grande Mistério (e o Mistério, na obra de Gilberto Mendonça Teles, se configura como uma estrutura isotópica maior, o Grande Sema Isotópico), aquilo que é denominado como ÍCONE POSITIVO e que poderia se chamar, também, MUNDO DO SILÊNCIO. O sujeito da enunciação afirma que, nessa região inacessível, há caminhos; há brechas; há mágoas (melindres). Ele percorreu esses caminhos, vislumbrou as brechas, sofreu mágoas até atingir o ponto fraco (ou forte) de si mesmo; até alcançar a essência, o interior da própria alma. Toda esta caminhada não revela o ÍCONE POSITIVO em toda a sua grandeza, mas possibilita revelar uma parte do ÍCONE NEGATIVO. O seu processo de manifestação do Amor se verá refletido em um pequenino CONE, "a leitura do verso da medalha". Consequentemente, "um cone apenas restará". Cabe a você (um tu hipotético) deslindar o mistério do ÍCONE NEGATIVO que se projeta no CONE.

No terceiro movimento, o sujeito da enunciação vislumbra a possibilidade da obra não ser devidamente decodificada.

Se um eclipse anular teu privilégio
de percepção da imagem retorcida,
é que no fundo a taxa de mistério
continua por dentro, na saliva,
no resmungo da língua e na viagem
que em si mesma se faz, mas sem caminho,
sem margens de sentido (...)

"Eclipse", nas Ciências Exatas, transmite a ideia de obstrução. Imagina-se que, para o Poeta, a ideia seja semelhante. "Eclipse", nesta acepção, como obstrução do entendimento. Cada palavra possuindo plurissignificações e possibilitando inúmeras interpretações. Será que o analista (o simplesmente analista, o cientificamente analista) conseguirá compreender a mensagem contida nas entrelinhas do texto de Gilberto Mendonça Teles? "Se um eclipse anular teu privilégio de percepção". Atente-se para o jogo de ideias entre o Poeta e o Leitor: eclipse anular / eclipse lunar. A palavra anular (por enquanto, rejeita-se o seu valor verbal) oferece a ideia de anel, ou seja, rodear o texto e não entendê-lo. "Anular", em sua conotação verbal aponta para algo como apagar o entendimento. Aceitando-se o ludismo do Poeta, vislumbrar-se-á um eclipse lunar (inexistente no texto), transmitindo a ideia de obscuridade: a lua e o sol propiciando o eclipse. Isto realça a impressão de que nem sempre o leitor (crítico) poderá alcançar a mensagem que se encontra inserida nas entrelinhas de um texto poético. A linguagem da poesia lírica é naturalmente opaca, ambígua, possibilitando inúmeras interpretações. É uma linguagem que, apesar de revelar algo (não no sentido de esclarecer totalmente as mensagens sublineares, mas no sentido de vir ao mundo conceitual já camuflada), não consegue revelar o Grande Mistério da Criação Literária-Poético-Lírica em sua totalidade.

O quarto e último movimento do poema "&Cone de Sombras" sintetiza todo o conteúdo da mensagem. A linguagem poética também faz parte do mundo dos conceitos já sacralizados; possui inclusive suas próprias regras. As palavras (conceituais) são insuficientes para significar o Mundo do Silêncio. O Poeta sabe que está limitado, pelo fato de necessitar da linguagem (das palavras e dos sinais) para dar forma ao Mistério que só ele vislumbrou. Assim, tem muita razão quando nos diz que "a taxa de mistério continua por dentro, na saliva, no resmungo da língua". "Se um eclipse anular" o privilégio de entendimento do leitor, seja ele um principiante ou um grande estudioso do texto poético, é porque o mistério é muito grande e o texto "é pura praxis, simples figuração do descontínuo".

"&Cone de Sombras", pela ótica da interpretação fenomenológica (compreensão das entrelinhas do texto), simboliza a fórmula poética encontrada por Gilberto, para demonstrar os caminhos percorridos ao longo de sua atuação como revelador da Poesia que vigora no espaço amorfo do Silêncio. Esses caminhos, aparentemente inóspitos, propiciam a manifestação do amor, mas se encontram à deriva nesse mesmo espaço descontínuo. Cabe ao intérprete, muito mais que ao analista, refazer a trajetória do Poeta, valendo-se do próprio texto interpretado, para que possa ter o privilégio de entender o mistério que se encontra "por dentro, na saliva, no resmungo da língua".






domingo, 9 de outubro de 2011

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA "A PEDRA"

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA “A PEDRA”

NEUZA MACHADO




Esta análise faz parte do livro Criação Poética: Tema e Reflexão: Sobre a obra poética de Gilberto Mendonça Teles.

MACHADO, Neuza. Criação Poética: Tema e Reflexão - Sobre a Obra Poética de Gilberto Mendonça Teles. Rio de Janeiro: NMACHADO, 2005.

Apreciem os esquemas do poema no final do capítulo.



A Pedra


Gilberto Mendonça Teles


No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?


Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?


No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.


No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala,
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.


No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.


(TELES, Gilberto Mendonça. Hora aberta. (Poemas reunidos). 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986 (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).

 

Neste poema, o sujeito poético (da segunda fase do século XX) transgride a idéia referencial da palavra pedra, enquanto elemento característico do discurso linguístico, para oferecer aos seus leitores-eleitos um novo sentido – conotações próprias do discurso poético – que o faz perceber a pedra como símbolo do processo evolutivo de realização da poesia.


Para facilitar a explanação, o poema foi dividido em três movimentos: o primeiro é o somatório das duas estrofes iniciais, o segundo é formado pelas estrofes três e quatro e o terceiro movimento se situa na quinta estrofe.

Analisando o primeiro movimento, observa-se que há somente um referente como elemento estruturador. Este referente está desdobrado em três significações e remete à idéia de que a pedra do poema passou por um processo de lapidação até se converter em pedra preciosa. Depois da organização da tripartição conotativa, já se torna possível detectar alguns sememas e semas, autorizando-me a definir conscientemente o que o sujeito poético quis expressar. Assim, seguindo os preceitos da semiologia (poética) de segunda geração, os sememas, que induzem a pensar em pedra como elemento referencial tripartido (no caso específico da criação poética de GMT, desdobramento evolutivo de apreensão da Poesia), se apoiam nas palavras princípio, meio e fim.


No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:


O sujeito da enunciação sobressai-se: é ele o elemento de ligação que atuará em todos os campos semânticos do poema. Graças a esta interferência, este eu lírico – eu lírico do século XX – racionaliza o subjetivo, questiona, indaga, procura significar, de acordo com o que Greimas denomina como signo linguístico complexo, seu próprio labor poético.

Ainda, em relação ao referente pedra, observa-se no terceiro verso da primeira estrofe a palavra sob uma significação que difere dos sentidos conotativos anteriores. Neste verso, a expressão popular dormi como uma pedra ganha foros de irrealidade e passa a fazer parte de um universo singular, acessível somente a uma minoria privilegiada. Por intermédio de um ludismo semântico, o sujeito poético sintetiza o seu papel de Ser marginalizado, enquanto Criador, enquanto habitante de um espaço recôndito em confronto com seu outro duplo social, vivenciador de um mundo limitado, no qual imperam regras e conceitos.


É importante esclarecer que, agora, estou posicionando-me como intérprete, ou seja, interpretando a mensagem poética; não há nada no poema de Gilberto Mendonça que me autorize uma tal afirmativa, a não ser a sugestão extratexto da expressão dormi como uma pedra inserida no discurso poético, caracterizado por diversos graus de opacidade.


Dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?


Estes dois versos, seguidos da segunda estrofe do primeiro movimento, fazem parte de um submovimento, que não foi esquematizado por não afetar a estrutura fundamental do poema. Por tal motivo, os questionamentos e indagações do sujeito da enunciação poética se encontram sintetizados numa única idéia, aventada pelo mesmo, quando este sugere a imagem de um eu em oscilação, meio de fora, supondo uma expressão complementar meio de dentro, idéia que me possibilita reafirmar o que foi destacado antes: o conteúdo do poema refere-se ao processo evolutivo da criação poética. Para se comprovar esta assertiva, há ainda a declaração do sujeito da enunciação poética revelando a sua função de nomear, significando dar existência a, gerar, formar.


Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora.


Este questionamento reflete a problemática existencial dos líricos do século XX. Um outro grande poeta da Segunda Geração do Modernismo Brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, preocupou-se também com o problema. Em uma reflexão poética, no “Poema das sete faces”, poema de abertura do livro Alguma Poesia, ele se nomeia o próprio agente da enunciação: Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Consequentemente, os anjos tortos (seres de um plano insólito, plano este que, no âmbito da literatura, se caracteriza como privilégio exclusivo dos escritores do já nomeado século XX, sejam eles ficcionistas ou poetas) fazem parte desse espaço recôndito (espaço livre, de tempo ou de lugar), acessível somente aos marcados pelo estigma da marginalidade. É bom lembrar que "marginalidade", aqui, não se refere à Poesia Marginal, enquanto marca registrada de um determinado fazer poético. Assim, se nada no poema induz a pensar em um alguém específico, que tivesse deixado o sujeito poético meio oscilante, a Semiologia do Texto Poético, atualmente (de meados do século XX até o momento), já permite uma explicação intertextual, apoiada nas escrituras de outros poetas, em que o analista busca no imaginário popular os mitos que estruturam o viver cotidiano da Humanidade, carente de um sentido mágico que a faça sobreviver.


E eis que, a partir do século XX, cada poeta intuiu/intui o enredo amorfo que circunda sua esfera conceptual. Cada poeta, de acordo com sua própria sensibilidade, procurou/procura dar forma à Poesia que o faz oscilar entre esses dois espaços. Seria extrapolar limites estéticos, ou mesmo semiológicos, imaginar que o "anjo torto", de Carlos Drummond de Andrade, seja a própria personificação da Poesia, como também o "alguém" deste poema de Gilberto Mendonça Teles? Evidentemente, não se trata de qualquer poesia; aqui se ressalta a Poesia que se integra em um espaço extra-razão, no qual os conceitos não podem reinar. A palavra "torto", por exemplo, não possui uma conotação pejorativa no universo poético. Por este prisma, seria assim inconcebível pensar que o "alguém", que tanto desconcerta o sujeito poético gilbertiano, deixando os seus lençóis em desalinho, seja a mesma Poesia que veio/vem, através dos séculos, na calada da noite, nas horas mortas, nos momentos de euforia ou de desilusão, nos sonhos, incomodar a existência desses seres assinalados, concebidos para vislumbrar além de suas fronteiras?


O Poeta (e aqui não o destacamos mais como "sujeito" poético ou mesmo como "sujeito" da enunciação poética), nestes versos, re-vela a sua condição de "demiurgo" (não é mais um "sujeito", não se submete às normas poético-substanciais), quando realça a sua capacidade para nomear o Amor (ou seja, a própria Poesia), dinamicamente atemporal. No segundo movimento do poema, afirma que, no espaço em que se encontra nomeando o amor, nomeia a musa que existia / no chão do nome e no colchão da fala. Assim, Amor e Musa fundem-se, transformam-se em uma única essência: a Poesia. Pelo prisma da interpretação fenomenológica, alicerçada firmemente na sensibilidade erótica do Poeta, a poesia é a amante perfeita, aquela que o satisfaz plenamente, aquela que o leva aos mais altos estágios do gozo e que, solícita, compreende seus mínimos desejos, deixando seus lençóis em desalinho. De acordo com o que nos passa o Poeta, agora, indivíduo, único dono de seu engenho poético, a poesia é a personificação de um ser incorpóreo, habitante de um universo oculto, espiritual, mas, passível de se materializar, por intermédio dos sonhos, adquirindo forma feminina em contatos eróticos com os homens, e forma masculina, com as mulheres. No universo mágico-substancial, estes seres possuem nomes especiais: súcubos, os que possuem formas femininas, e íncubos, formas masculinas. A própria Bíblia – a Bíblia é um repositório das mais diversas formas literárias – alude a essas personagens, presenças permanentes nas literaturas de todos os tempos.


"Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nasceram filhos, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas, e escolheram esposas entre elas." (Gên. 6, 1-4)

Os livros apócrifos falam de Anjos guerreiros que, saindo do plano mítico, ficavam encantados com as mulheres terrenas, falam, inclusive, de contatos sexuais. Retomo aqui os mitos e lendas porque o próprio indivíduo poético induz-me a tal raciocínio. Seus poemas, geralmente, fazem alusão ao imenso caudal mítico, estruturador de todas as civilizações, faz alusão à quota de lenda em conta-gotas (p. 86, op. cit.) que fortalece o cotidiano de quem quer que seja.

Como forma de esclarecimento ao meu público-alvo (alunos da Formação Secundária e de Graduação em Letras), por antecipação, afirmo que os poemas aqui analisados e interpretados não pertencem ao Gênero Épico, forma mais propícia ao reconhecimento da matéria mítico/mística. Apenas, aludi ao assunto – mitos, lendas, trechos bíblicos – porque há nesses poemas de Gilberto, notadamente líricos, a presença incontestável dessa matéria. O poema "A Pedra" remete, a quem o estiver lendo, instintivamente à Bíblia, seja o leitor um estudioso profundo do fenômeno poético ou um simples curioso, um leitor casual, mas que entenda um pouco do assunto religião.


No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.


Como contraponto estritamente interpretativo, eis aqui alguns versículos do Antigo e do Novo Testamento que reforçam o que desejo explicitar.


"No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita." (Gên. 1, 1-3)

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus." (João, 1, 1-2)


"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós." (João, 14)

O evangelista João reafirma a idéia mítica da criação do mundo, contida no Antigo Testamento, para dar sustentação inconteste à condição mítica de Jesus Cristo, o Verbo (que) se fez carne e habitou entre nós; Aquele que no princípio era o Verbo e estava junto de Deus e era Deus; Aquele que saiu do espaço etéreo e conquistou uma existência terrena. Verbo como a palavra primeira e permanente; Verbo como a palavra substancial, segundo a Bíblia. Verbo, e agora está em pauta a poesia de Gilberto Mendonça Teles, como pedra primordial e seu instante / de existência sem nome, realidade / carente de sintaxe e vacilante / no seu jeito de ser pela metade. Pedra que reflete a ambiguidade só permitida aos que possuem caracteres sobrenaturais. Assim como o Verbo bíblico é a expressão de dois planos distintos, o divino e o material, esta pedra, no poema de Gilberto M. Teles, é a expressão referencial dos dois espaços ideológicos que compõem a realidade histórica: o sócio-substancial e o mítico-substancial. [Observação: Para evitar complexas argumentações teóricas, a palavra "ideologia" será substituída, neste estudo, pela palavra "substancial"].


Retomando a análise do poema, a primeira estrofe, do segundo movimento, remete a todas as hipóteses, reavaliadas acima, e mais ainda: a pedra, em seu momento inicial, como referente das coisas sem forma, ou seja, da Musa ainda velada, assim como é também referente do Amor, em seu estágio inicial, sem forma, ainda velado, do primeiro movimento. Por isto, unindo os dois movimentos iniciais, percebe-se a pedra como expressão da intuição do poeta, intuição como sentido sêmico da pedra, enquanto silêncio ainda não-manifestado. Aludindo a tudo que foi explorado até agora, esta pedra-poesia-não-manifestada representaria o divino que se encontra no espaço do não-dito, ou espaço infinito, ou espaço do silêncio, qualquer que seja a nomenclatura escolhida, um pouco alheio às codificações; representaria, assim, o Grande Silêncio, sem princípio e sem fim, mas, possuindo alguns planos passíveis de serem significados.


Em um momento/movimento, esta mesma pedra se transforma. Um ser especial, meio oscilante entre dois planos distintos, põe-se a trabalhar, lapidando-a, procurando dar-lhe a devida forma, retirando a camada de mistério que a recobre. No meio, na ante-sala, habita este lírico ser demiúrgico. No meio, encontra-se o sujeito da enunciação poética, elemento (indispensável) de ligação entre os campos semânticos do poema.

Pelo ponto de vista de Greimas,

“É perfeitamente normal que o sujeito da enunciação poética esteja presente, de uma maneira ou de outra, no processo de produção do objeto poético, e nesse próprio objeto; é este até um dos critérios que permitem distinguir a literatura escrita da literatura oral. Todavia, o fato de ser característico da manifestação escrita já o priva de uma parte de sua espontaneidade criativa, de que se supõe seja ele refúgio.”


A importância de se conhecer as diretrizes semiológicas de abordagem do texto poético é por demais válida, pois estas impedem o analista de se desviar do assunto escolhido e desenvolver uma análise crítica distanciada da mensagem que o poeta quis transmitir. Aproveitado o fato de que a Semiologia atual, de Segunda Geração, já não se apoia em padrões rígidos, e permite uma extra-interpretação do texto, depois, evidentemente, de uma desmontagem, depois de um reconhecimento pertinente da essência contida no espaço visual da obra, procuraremos desenvolver um intercâmbio salutar entre o método cientificista (Semiologia) e a interpretação fenomenológica (Hermenêutica), em benefício da apreensão correta das camadas visíveis e invisíveis dos textos poéticos aqui ressaltados. Eis porque, quando os comentários se referem ao sujeito da enunciação poética, este é colocado ainda dentro dos moldes fenomenológicos, ou seja, pressupõe-se um espaço meio mágico, para ali o localizarmos. Em termos de apreciação crítica, não há como escapar de uma certa mitificação, quando o assunto é Arte, extensivo, consequentemente, ao Criador Literário, aquele escolhido por antecipação, possuidor do conhecimento do Indizível. Este eu, o qual é designado como sujeito da enunciação poética, de acordo com a nomenclatura textualista greimasiana, está inserido em um plano muito particular da criação poética. Este plano, ou espaço, situa-se como intermezzo, meio, ante-sala, e, nesta dimensão insólita, este eu expressaria a essência deífica que habita em todos os seres humanos, mas que, lamentavelmente, é apreendida somente por um especialíssimo grupo de sensitivos, os quais transformam as velhas imagens poéticas em imagens líricas, que, segundo Bachelard, vivem da vida da linguagem viva.


“No universo ambíguo da literatura, todo e qualquer ser humano tem acolhida. Nesse espaço, sentimo-nos “em casa”, pois, lendo e/ou escrevendo, somos, cada um de nós, o Adão de nosso próprio mundo, e nos sabemos capazes de inventar a vida. Assim, num ato de mágica, a literatura nos revela que todas as funções que se lhe atribuem reúnem-se, harmonicamente, em sua função nomeadora. Provocando o brilho do nome, ao despertar novos sentidos, a literatura (se) constrói (como) o universo possível do homem. A poderosos golpes de linguagem.”

Este acertado raciocínio de Ângela Fabiana refere-se ao poema “Golpe”, de Cláudio Leitão, comentando o poder da literatura, situada entre linguagem e língua, em sua função nomeadora. Nessa dimensão intermediária, todos os poetas do século XX se instalaram. No caso do poema A Pedra, o sujeito da enunciação inventa a vida, revela a Musa, revela o Amor, provoca o brilho do nome, por intermédio da transcrição poética, melhor dizendo, da poesia-forma, único meio de se nomear opacamente as coisas sem forma, único meio de se desvelar, no sentido de trazer à luz em toda a sua plenitude, a Poesia. Nesse estágio intermediário, este sujeito da enunciação confunde-se com o próprio Poeta, pois quem revela é o Poeta. Intuição e, posteriormente, significação – semas nucleares diferentes – se unem no texto escrito; e, este, mesmo já privado de uma parte de sua espontaneidade criativa, em virtude de se separar do oral, não perde seu aspecto mágico. Se o sujeito da enunciação poética nomeia a Musa, o Amor, a Poesia, e, esclareço desde já, segundo os critérios deste estudo, estes termos se unificam (ou se completam) em uma só expressão, este sujeito nomeia, também, aquele que se encontra por trás dos bastidores, atuando incognitamente, revelando o espetáculo, inventando a vida, recriando mimeticamente a realidade, tendo como suporte referencial exíguos conceitos linguísticos. Cabe a este Ser incógnito desenvolver novos conceitos, transgredir os códigos usuais, criar uma linguagem própria que faça a Poesia-Silêncio ultrapassar o espaço restrito da língua, para dar brilho à Poesia-Silêncio Manifestado, quando esta for, realmente, a pedra preciosa sugerida pelo Poeta, e, cujo real valor, apenas alguns privilegiados estão aptos para detectar. Não é objetivo desta apreciação teórico-crítica exaltar a classe dos analistas, mas, decompondo o texto, ou melhor, de acordo com o próprio texto analisado, a pedra-referencial tripartida remete a este estágio de criação poética, no qual se detecta a pedra lapidada já como pedra preciosa. Assim, o ato de criação poética se revela como um processo evolutivo, em que, em princípio, há uma pedra ainda bruta, não lapidada. Posteriormente, graças a um trabalho de ourives, esta mesma pedra se transforma em pedra preciosa. Consequentemente, além da pedra, em suas três acepções, há a Poesia, enquanto sentimento difícil de ser verbalizado, vigorando no Espaço Absoluto da Arte.


No texto, texto enquanto transcrição, se projetam intuição e significação. Quando faço alusão a alguns conhecedores do fazer poético, estou apenas realçando o que me foi sugerido, metaforicamente, pelo próprio sujeito da enunciação, e que procuro apreender no último movimento do poema. Por enquanto, posso dizer que uma pedra preciosa só poderá ser avaliada por quem entende da função. Um leigo vislumbraria o brilho da pedra, mas não reconheceria o seu valor. As pedras coloridas, pertencentes às espécies inferiores, costumam apresentar também um certo brilho.


Quanto ao terceiro e último movimento, uma análise bem elaborada o apresentará como catalisador do processo de compreensão do poema.


No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.


Este último movimento atua como catalisador do processo de compreensão do poema, porque o sujeito da enunciação desenvolve um discurso lúdico e informa que, no fim tudo é princípio. Ele desenvolveu um pensamento circular no intuito de alertar seus leitores para a importância da compreensão do sentido final de seu texto poético, ou mesmo de qualquer texto poético que apresente um alto grau de opacidade. O semema "fim", que constrói o referente “pedra preciosa”, além de remeter à idéia própria da palavra, oferece também outras possibilidades de interpretação. Em um primeiro momento, "no fim" aproxima-se de algumas expressões populares, significando afinal, ou para finalizar, ou de qualquer maneira, etc. No fim, tudo é princípio: depois da criação, principia-se um novo ciclo. Fez-se luz. Um eu especial significou uma parte do imponderável que se encontrava soterrado sob toneladas de pó. Um eu especial lapidou, retirou as crostas que embaçavam o brilho da pedra, e revelou (no sentido de trazer à luz e novamente velar) a pedra preciosa e seu brilho que escurece a visão. Este eu sabe que a linguagem poética transcende as imposições linguísticas – sócio-substanciais – da realidade vital.


Assinalei, no parágrafo anterior, que o terceiro movimento atua como catalisador do processo de compreensão do poema e afirmo que foi este movimento que orientou-me quanto à idéia da tripartição do referente "pedra". Duas expressões fizeram-me pensar no fazer poético como um bloco granítico precioso necessitando de ser lapidado: cavar no pó do pergaminho, o qual remeteu-me ao ato de escavar uma mina de pedras preciosas, e (cavar) talvez um veio na pedra, outra expressão que oferece, também, a mesma idéia. Veio na pedra é também outra expressão que, por exemplo, lembra o brilho do diamante, ainda incrustado na pedra comum.


Ao reler a estrofe com atenção, constata-se que, depois da revelação, o Mistério permanece. A pedra transforma-se em pedra preciosa apenas para aquele que se posiciona como lapidador. A pedra lapidada – o texto transcrito – transmuta-se novamente em pedra bruta, e se alguém desejar decodificar o que foi codificado poeticamente, terá de desenvolver o mesmo processo de lapidação. O eterno recomeçar cíclico. No fim, tudo é princípio e o meio é meio / de alguém cavar no pó do pergaminho/ um sentido final. Alguém manuseará o texto e este se revelará como um bloco de pedra em estado primitivo. Este alguém procurará cavar no pó do pergaminho até encontrar um sentido final, um veio que demonstrará a preciosidade que se encontra inserida nas entrelinhas do texto poético. Entretanto, para este alguém, há também outros meios para se alcançar o entendimento do texto. Há de escolher-se um que esteja de acordo com as ambições do mesmo. Aquele que estiver predisposto a descobrir os segredos da mina de pedras preciosas poderá, por exemplo, começar a cavar, iniciando-se pela intuição do que já fora intuído anteriormente pelo eu do enunciado, ou começar pela significação, vislumbrando o texto em todo o seu brilho e retornar, gradativamente, até recuperar o seu princípio como pedra bruta. Por último, há a possibilidade de encontrar o caminho já desobstruído por outros e começar a penetrar, no texto, por intermédio do sentido final. Este é o meio mais fácil. No fim, tudo é princípio: não importa o estágio de evolução do fazer poético, o certo, o concreto, é que há uma pedra no meio do caminho e Anjos tortos deixando alguns lençóis em desalinho.





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