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domingo, 9 de outubro de 2011

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA "A PEDRA"

GILBERTO MENDONÇA TELES, O POETA SINGULAR - ANÁLISE DO POEMA “A PEDRA”

NEUZA MACHADO




Esta análise faz parte do livro Criação Poética: Tema e Reflexão: Sobre a obra poética de Gilberto Mendonça Teles.

MACHADO, Neuza. Criação Poética: Tema e Reflexão - Sobre a Obra Poética de Gilberto Mendonça Teles. Rio de Janeiro: NMACHADO, 2005.

Apreciem os esquemas do poema no final do capítulo.



A Pedra


Gilberto Mendonça Teles


No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:
dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?


Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora?


No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.


No meio, além da pedra, a poesia
dessas coisas sem forma, na ante-sala,
onde nomeio a musa que existia
no chão do nome e no colchão da fala.


No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.


(TELES, Gilberto Mendonça. Hora aberta. (Poemas reunidos). 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio / Brasília: INL - Instituto Nacional do Livro, 1986 (Edição Comemorativa dos Trinta Anos de Poesia).

 

Neste poema, o sujeito poético (da segunda fase do século XX) transgride a idéia referencial da palavra pedra, enquanto elemento característico do discurso linguístico, para oferecer aos seus leitores-eleitos um novo sentido – conotações próprias do discurso poético – que o faz perceber a pedra como símbolo do processo evolutivo de realização da poesia.


Para facilitar a explanação, o poema foi dividido em três movimentos: o primeiro é o somatório das duas estrofes iniciais, o segundo é formado pelas estrofes três e quatro e o terceiro movimento se situa na quinta estrofe.

Analisando o primeiro movimento, observa-se que há somente um referente como elemento estruturador. Este referente está desdobrado em três significações e remete à idéia de que a pedra do poema passou por um processo de lapidação até se converter em pedra preciosa. Depois da organização da tripartição conotativa, já se torna possível detectar alguns sememas e semas, autorizando-me a definir conscientemente o que o sujeito poético quis expressar. Assim, seguindo os preceitos da semiologia (poética) de segunda geração, os sememas, que induzem a pensar em pedra como elemento referencial tripartido (no caso específico da criação poética de GMT, desdobramento evolutivo de apreensão da Poesia), se apoiam nas palavras princípio, meio e fim.


No princípio e no fim, no vão do meio,
uma pedra nomeia o meu caminho:


O sujeito da enunciação sobressai-se: é ele o elemento de ligação que atuará em todos os campos semânticos do poema. Graças a esta interferência, este eu lírico – eu lírico do século XX – racionaliza o subjetivo, questiona, indaga, procura significar, de acordo com o que Greimas denomina como signo linguístico complexo, seu próprio labor poético.

Ainda, em relação ao referente pedra, observa-se no terceiro verso da primeira estrofe a palavra sob uma significação que difere dos sentidos conotativos anteriores. Neste verso, a expressão popular dormi como uma pedra ganha foros de irrealidade e passa a fazer parte de um universo singular, acessível somente a uma minoria privilegiada. Por intermédio de um ludismo semântico, o sujeito poético sintetiza o seu papel de Ser marginalizado, enquanto Criador, enquanto habitante de um espaço recôndito em confronto com seu outro duplo social, vivenciador de um mundo limitado, no qual imperam regras e conceitos.


É importante esclarecer que, agora, estou posicionando-me como intérprete, ou seja, interpretando a mensagem poética; não há nada no poema de Gilberto Mendonça que me autorize uma tal afirmativa, a não ser a sugestão extratexto da expressão dormi como uma pedra inserida no discurso poético, caracterizado por diversos graus de opacidade.


Dormi como uma pedra ou alguém veio
deixar os meus lençóis em desalinho?


Estes dois versos, seguidos da segunda estrofe do primeiro movimento, fazem parte de um submovimento, que não foi esquematizado por não afetar a estrutura fundamental do poema. Por tal motivo, os questionamentos e indagações do sujeito da enunciação poética se encontram sintetizados numa única idéia, aventada pelo mesmo, quando este sugere a imagem de um eu em oscilação, meio de fora, supondo uma expressão complementar meio de dentro, idéia que me possibilita reafirmar o que foi destacado antes: o conteúdo do poema refere-se ao processo evolutivo da criação poética. Para se comprovar esta assertiva, há ainda a declaração do sujeito da enunciação poética revelando a sua função de nomear, significando dar existência a, gerar, formar.


Quem foi que andou pisando a minha vida
e me deixou assim meio de fora,
oscilando em mim mesmo, na medida
em que nomeio o amor, aqui e agora.


Este questionamento reflete a problemática existencial dos líricos do século XX. Um outro grande poeta da Segunda Geração do Modernismo Brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, preocupou-se também com o problema. Em uma reflexão poética, no “Poema das sete faces”, poema de abertura do livro Alguma Poesia, ele se nomeia o próprio agente da enunciação: Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Consequentemente, os anjos tortos (seres de um plano insólito, plano este que, no âmbito da literatura, se caracteriza como privilégio exclusivo dos escritores do já nomeado século XX, sejam eles ficcionistas ou poetas) fazem parte desse espaço recôndito (espaço livre, de tempo ou de lugar), acessível somente aos marcados pelo estigma da marginalidade. É bom lembrar que "marginalidade", aqui, não se refere à Poesia Marginal, enquanto marca registrada de um determinado fazer poético. Assim, se nada no poema induz a pensar em um alguém específico, que tivesse deixado o sujeito poético meio oscilante, a Semiologia do Texto Poético, atualmente (de meados do século XX até o momento), já permite uma explicação intertextual, apoiada nas escrituras de outros poetas, em que o analista busca no imaginário popular os mitos que estruturam o viver cotidiano da Humanidade, carente de um sentido mágico que a faça sobreviver.


E eis que, a partir do século XX, cada poeta intuiu/intui o enredo amorfo que circunda sua esfera conceptual. Cada poeta, de acordo com sua própria sensibilidade, procurou/procura dar forma à Poesia que o faz oscilar entre esses dois espaços. Seria extrapolar limites estéticos, ou mesmo semiológicos, imaginar que o "anjo torto", de Carlos Drummond de Andrade, seja a própria personificação da Poesia, como também o "alguém" deste poema de Gilberto Mendonça Teles? Evidentemente, não se trata de qualquer poesia; aqui se ressalta a Poesia que se integra em um espaço extra-razão, no qual os conceitos não podem reinar. A palavra "torto", por exemplo, não possui uma conotação pejorativa no universo poético. Por este prisma, seria assim inconcebível pensar que o "alguém", que tanto desconcerta o sujeito poético gilbertiano, deixando os seus lençóis em desalinho, seja a mesma Poesia que veio/vem, através dos séculos, na calada da noite, nas horas mortas, nos momentos de euforia ou de desilusão, nos sonhos, incomodar a existência desses seres assinalados, concebidos para vislumbrar além de suas fronteiras?


O Poeta (e aqui não o destacamos mais como "sujeito" poético ou mesmo como "sujeito" da enunciação poética), nestes versos, re-vela a sua condição de "demiurgo" (não é mais um "sujeito", não se submete às normas poético-substanciais), quando realça a sua capacidade para nomear o Amor (ou seja, a própria Poesia), dinamicamente atemporal. No segundo movimento do poema, afirma que, no espaço em que se encontra nomeando o amor, nomeia a musa que existia / no chão do nome e no colchão da fala. Assim, Amor e Musa fundem-se, transformam-se em uma única essência: a Poesia. Pelo prisma da interpretação fenomenológica, alicerçada firmemente na sensibilidade erótica do Poeta, a poesia é a amante perfeita, aquela que o satisfaz plenamente, aquela que o leva aos mais altos estágios do gozo e que, solícita, compreende seus mínimos desejos, deixando seus lençóis em desalinho. De acordo com o que nos passa o Poeta, agora, indivíduo, único dono de seu engenho poético, a poesia é a personificação de um ser incorpóreo, habitante de um universo oculto, espiritual, mas, passível de se materializar, por intermédio dos sonhos, adquirindo forma feminina em contatos eróticos com os homens, e forma masculina, com as mulheres. No universo mágico-substancial, estes seres possuem nomes especiais: súcubos, os que possuem formas femininas, e íncubos, formas masculinas. A própria Bíblia – a Bíblia é um repositório das mais diversas formas literárias – alude a essas personagens, presenças permanentes nas literaturas de todos os tempos.


"Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nasceram filhos, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas, e escolheram esposas entre elas." (Gên. 6, 1-4)

Os livros apócrifos falam de Anjos guerreiros que, saindo do plano mítico, ficavam encantados com as mulheres terrenas, falam, inclusive, de contatos sexuais. Retomo aqui os mitos e lendas porque o próprio indivíduo poético induz-me a tal raciocínio. Seus poemas, geralmente, fazem alusão ao imenso caudal mítico, estruturador de todas as civilizações, faz alusão à quota de lenda em conta-gotas (p. 86, op. cit.) que fortalece o cotidiano de quem quer que seja.

Como forma de esclarecimento ao meu público-alvo (alunos da Formação Secundária e de Graduação em Letras), por antecipação, afirmo que os poemas aqui analisados e interpretados não pertencem ao Gênero Épico, forma mais propícia ao reconhecimento da matéria mítico/mística. Apenas, aludi ao assunto – mitos, lendas, trechos bíblicos – porque há nesses poemas de Gilberto, notadamente líricos, a presença incontestável dessa matéria. O poema "A Pedra" remete, a quem o estiver lendo, instintivamente à Bíblia, seja o leitor um estudioso profundo do fenômeno poético ou um simples curioso, um leitor casual, mas que entenda um pouco do assunto religião.


No princípio era a pedra e seu instante
de existência sem nome, realidade
carente de sintaxe e vacilante
no seu jeito de ser pela metade.


Como contraponto estritamente interpretativo, eis aqui alguns versículos do Antigo e do Novo Testamento que reforçam o que desejo explicitar.


"No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita." (Gên. 1, 1-3)

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus." (João, 1, 1-2)


"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós." (João, 14)

O evangelista João reafirma a idéia mítica da criação do mundo, contida no Antigo Testamento, para dar sustentação inconteste à condição mítica de Jesus Cristo, o Verbo (que) se fez carne e habitou entre nós; Aquele que no princípio era o Verbo e estava junto de Deus e era Deus; Aquele que saiu do espaço etéreo e conquistou uma existência terrena. Verbo como a palavra primeira e permanente; Verbo como a palavra substancial, segundo a Bíblia. Verbo, e agora está em pauta a poesia de Gilberto Mendonça Teles, como pedra primordial e seu instante / de existência sem nome, realidade / carente de sintaxe e vacilante / no seu jeito de ser pela metade. Pedra que reflete a ambiguidade só permitida aos que possuem caracteres sobrenaturais. Assim como o Verbo bíblico é a expressão de dois planos distintos, o divino e o material, esta pedra, no poema de Gilberto M. Teles, é a expressão referencial dos dois espaços ideológicos que compõem a realidade histórica: o sócio-substancial e o mítico-substancial. [Observação: Para evitar complexas argumentações teóricas, a palavra "ideologia" será substituída, neste estudo, pela palavra "substancial"].


Retomando a análise do poema, a primeira estrofe, do segundo movimento, remete a todas as hipóteses, reavaliadas acima, e mais ainda: a pedra, em seu momento inicial, como referente das coisas sem forma, ou seja, da Musa ainda velada, assim como é também referente do Amor, em seu estágio inicial, sem forma, ainda velado, do primeiro movimento. Por isto, unindo os dois movimentos iniciais, percebe-se a pedra como expressão da intuição do poeta, intuição como sentido sêmico da pedra, enquanto silêncio ainda não-manifestado. Aludindo a tudo que foi explorado até agora, esta pedra-poesia-não-manifestada representaria o divino que se encontra no espaço do não-dito, ou espaço infinito, ou espaço do silêncio, qualquer que seja a nomenclatura escolhida, um pouco alheio às codificações; representaria, assim, o Grande Silêncio, sem princípio e sem fim, mas, possuindo alguns planos passíveis de serem significados.


Em um momento/movimento, esta mesma pedra se transforma. Um ser especial, meio oscilante entre dois planos distintos, põe-se a trabalhar, lapidando-a, procurando dar-lhe a devida forma, retirando a camada de mistério que a recobre. No meio, na ante-sala, habita este lírico ser demiúrgico. No meio, encontra-se o sujeito da enunciação poética, elemento (indispensável) de ligação entre os campos semânticos do poema.

Pelo ponto de vista de Greimas,

“É perfeitamente normal que o sujeito da enunciação poética esteja presente, de uma maneira ou de outra, no processo de produção do objeto poético, e nesse próprio objeto; é este até um dos critérios que permitem distinguir a literatura escrita da literatura oral. Todavia, o fato de ser característico da manifestação escrita já o priva de uma parte de sua espontaneidade criativa, de que se supõe seja ele refúgio.”


A importância de se conhecer as diretrizes semiológicas de abordagem do texto poético é por demais válida, pois estas impedem o analista de se desviar do assunto escolhido e desenvolver uma análise crítica distanciada da mensagem que o poeta quis transmitir. Aproveitado o fato de que a Semiologia atual, de Segunda Geração, já não se apoia em padrões rígidos, e permite uma extra-interpretação do texto, depois, evidentemente, de uma desmontagem, depois de um reconhecimento pertinente da essência contida no espaço visual da obra, procuraremos desenvolver um intercâmbio salutar entre o método cientificista (Semiologia) e a interpretação fenomenológica (Hermenêutica), em benefício da apreensão correta das camadas visíveis e invisíveis dos textos poéticos aqui ressaltados. Eis porque, quando os comentários se referem ao sujeito da enunciação poética, este é colocado ainda dentro dos moldes fenomenológicos, ou seja, pressupõe-se um espaço meio mágico, para ali o localizarmos. Em termos de apreciação crítica, não há como escapar de uma certa mitificação, quando o assunto é Arte, extensivo, consequentemente, ao Criador Literário, aquele escolhido por antecipação, possuidor do conhecimento do Indizível. Este eu, o qual é designado como sujeito da enunciação poética, de acordo com a nomenclatura textualista greimasiana, está inserido em um plano muito particular da criação poética. Este plano, ou espaço, situa-se como intermezzo, meio, ante-sala, e, nesta dimensão insólita, este eu expressaria a essência deífica que habita em todos os seres humanos, mas que, lamentavelmente, é apreendida somente por um especialíssimo grupo de sensitivos, os quais transformam as velhas imagens poéticas em imagens líricas, que, segundo Bachelard, vivem da vida da linguagem viva.


“No universo ambíguo da literatura, todo e qualquer ser humano tem acolhida. Nesse espaço, sentimo-nos “em casa”, pois, lendo e/ou escrevendo, somos, cada um de nós, o Adão de nosso próprio mundo, e nos sabemos capazes de inventar a vida. Assim, num ato de mágica, a literatura nos revela que todas as funções que se lhe atribuem reúnem-se, harmonicamente, em sua função nomeadora. Provocando o brilho do nome, ao despertar novos sentidos, a literatura (se) constrói (como) o universo possível do homem. A poderosos golpes de linguagem.”

Este acertado raciocínio de Ângela Fabiana refere-se ao poema “Golpe”, de Cláudio Leitão, comentando o poder da literatura, situada entre linguagem e língua, em sua função nomeadora. Nessa dimensão intermediária, todos os poetas do século XX se instalaram. No caso do poema A Pedra, o sujeito da enunciação inventa a vida, revela a Musa, revela o Amor, provoca o brilho do nome, por intermédio da transcrição poética, melhor dizendo, da poesia-forma, único meio de se nomear opacamente as coisas sem forma, único meio de se desvelar, no sentido de trazer à luz em toda a sua plenitude, a Poesia. Nesse estágio intermediário, este sujeito da enunciação confunde-se com o próprio Poeta, pois quem revela é o Poeta. Intuição e, posteriormente, significação – semas nucleares diferentes – se unem no texto escrito; e, este, mesmo já privado de uma parte de sua espontaneidade criativa, em virtude de se separar do oral, não perde seu aspecto mágico. Se o sujeito da enunciação poética nomeia a Musa, o Amor, a Poesia, e, esclareço desde já, segundo os critérios deste estudo, estes termos se unificam (ou se completam) em uma só expressão, este sujeito nomeia, também, aquele que se encontra por trás dos bastidores, atuando incognitamente, revelando o espetáculo, inventando a vida, recriando mimeticamente a realidade, tendo como suporte referencial exíguos conceitos linguísticos. Cabe a este Ser incógnito desenvolver novos conceitos, transgredir os códigos usuais, criar uma linguagem própria que faça a Poesia-Silêncio ultrapassar o espaço restrito da língua, para dar brilho à Poesia-Silêncio Manifestado, quando esta for, realmente, a pedra preciosa sugerida pelo Poeta, e, cujo real valor, apenas alguns privilegiados estão aptos para detectar. Não é objetivo desta apreciação teórico-crítica exaltar a classe dos analistas, mas, decompondo o texto, ou melhor, de acordo com o próprio texto analisado, a pedra-referencial tripartida remete a este estágio de criação poética, no qual se detecta a pedra lapidada já como pedra preciosa. Assim, o ato de criação poética se revela como um processo evolutivo, em que, em princípio, há uma pedra ainda bruta, não lapidada. Posteriormente, graças a um trabalho de ourives, esta mesma pedra se transforma em pedra preciosa. Consequentemente, além da pedra, em suas três acepções, há a Poesia, enquanto sentimento difícil de ser verbalizado, vigorando no Espaço Absoluto da Arte.


No texto, texto enquanto transcrição, se projetam intuição e significação. Quando faço alusão a alguns conhecedores do fazer poético, estou apenas realçando o que me foi sugerido, metaforicamente, pelo próprio sujeito da enunciação, e que procuro apreender no último movimento do poema. Por enquanto, posso dizer que uma pedra preciosa só poderá ser avaliada por quem entende da função. Um leigo vislumbraria o brilho da pedra, mas não reconheceria o seu valor. As pedras coloridas, pertencentes às espécies inferiores, costumam apresentar também um certo brilho.


Quanto ao terceiro e último movimento, uma análise bem elaborada o apresentará como catalisador do processo de compreensão do poema.


No fim, tudo é princípio e o meio é meio
de alguém cavar no pó do pergaminho
um sentido final, talvez um veio
na pedra que nomeia o meu caminho.


Este último movimento atua como catalisador do processo de compreensão do poema, porque o sujeito da enunciação desenvolve um discurso lúdico e informa que, no fim tudo é princípio. Ele desenvolveu um pensamento circular no intuito de alertar seus leitores para a importância da compreensão do sentido final de seu texto poético, ou mesmo de qualquer texto poético que apresente um alto grau de opacidade. O semema "fim", que constrói o referente “pedra preciosa”, além de remeter à idéia própria da palavra, oferece também outras possibilidades de interpretação. Em um primeiro momento, "no fim" aproxima-se de algumas expressões populares, significando afinal, ou para finalizar, ou de qualquer maneira, etc. No fim, tudo é princípio: depois da criação, principia-se um novo ciclo. Fez-se luz. Um eu especial significou uma parte do imponderável que se encontrava soterrado sob toneladas de pó. Um eu especial lapidou, retirou as crostas que embaçavam o brilho da pedra, e revelou (no sentido de trazer à luz e novamente velar) a pedra preciosa e seu brilho que escurece a visão. Este eu sabe que a linguagem poética transcende as imposições linguísticas – sócio-substanciais – da realidade vital.


Assinalei, no parágrafo anterior, que o terceiro movimento atua como catalisador do processo de compreensão do poema e afirmo que foi este movimento que orientou-me quanto à idéia da tripartição do referente "pedra". Duas expressões fizeram-me pensar no fazer poético como um bloco granítico precioso necessitando de ser lapidado: cavar no pó do pergaminho, o qual remeteu-me ao ato de escavar uma mina de pedras preciosas, e (cavar) talvez um veio na pedra, outra expressão que oferece, também, a mesma idéia. Veio na pedra é também outra expressão que, por exemplo, lembra o brilho do diamante, ainda incrustado na pedra comum.


Ao reler a estrofe com atenção, constata-se que, depois da revelação, o Mistério permanece. A pedra transforma-se em pedra preciosa apenas para aquele que se posiciona como lapidador. A pedra lapidada – o texto transcrito – transmuta-se novamente em pedra bruta, e se alguém desejar decodificar o que foi codificado poeticamente, terá de desenvolver o mesmo processo de lapidação. O eterno recomeçar cíclico. No fim, tudo é princípio e o meio é meio / de alguém cavar no pó do pergaminho/ um sentido final. Alguém manuseará o texto e este se revelará como um bloco de pedra em estado primitivo. Este alguém procurará cavar no pó do pergaminho até encontrar um sentido final, um veio que demonstrará a preciosidade que se encontra inserida nas entrelinhas do texto poético. Entretanto, para este alguém, há também outros meios para se alcançar o entendimento do texto. Há de escolher-se um que esteja de acordo com as ambições do mesmo. Aquele que estiver predisposto a descobrir os segredos da mina de pedras preciosas poderá, por exemplo, começar a cavar, iniciando-se pela intuição do que já fora intuído anteriormente pelo eu do enunciado, ou começar pela significação, vislumbrando o texto em todo o seu brilho e retornar, gradativamente, até recuperar o seu princípio como pedra bruta. Por último, há a possibilidade de encontrar o caminho já desobstruído por outros e começar a penetrar, no texto, por intermédio do sentido final. Este é o meio mais fácil. No fim, tudo é princípio: não importa o estágio de evolução do fazer poético, o certo, o concreto, é que há uma pedra no meio do caminho e Anjos tortos deixando alguns lençóis em desalinho.





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